Casa de cômodos
Natureza e data do texto:
Trecho do capítulo XI do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha [1909], de Lima Barreto
“Durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do Rio Comprido. Era longe; mas escolhera‑a por ser barato o aluguel. Ficava a casa numa eminência, a cavaleiro da Rua Malvino Reis e, atualmente, os dois andares do antigo palacete que ela fora estavam divididos em duas ou três dezenas de quartos, onde moravam mais de cinqüenta pessoas.
O jardim, de que ainda restavam alguns gramados amarelecidos, servia de coradouro. Da chácara toda, só ficaram as altas árvores, testemunhas da grandeza passada e que davam, sem fadiga nem simpatia, sombra às lavadeiras, cocheiros e criados, como antes o fizeram aos ricaços que ali tinham habitado. Guardavam o portão duas esguias palmeiras que marcavam o ritmo do canto de saudades que a velha casa suspirava; e era de ver, pelo estio, a resignação de uma velha e nodosa mangueira, furiosamente atacada pela variegada pequenada a disputar‑lhe os grandes frutos, que alguns anos atrás bastavam de sobra para os antigos proprietários.
Houve noites em que como que ouvi aquelas paredes falarem, recordando o fausto sossegado que tinham presenciado, os cuidados que tinham merecido e os quadros e retratos veneráveis que tinham suportado por tantos anos. Lembrar‑se‑iam certamente dos lindos dias de festa, dos casamentos, dos aniversários, dos batizados, em que pares bem‑postos dançavam entre elas os lanceiros e uma veloz valsa à francesa.
À noite, quando entravam aqueles cocheiros de grandes pés, aqueles carregadores suados, o soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente, dolorosamente, angustiadamente… Que saudades não havia nesses gemidos dos breves pés das meninas quebradiças que o tinham palmilhado tanto tempo!
A casa pertencera talvez a um oficial de Marinha, um chefe de esquadra. Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos‑marinhos e uma parte da concha ficaram de um lado e o deus do outro, com um pedaço do tridente, cercado de tritões e nereidas.
Num cômodo (em alguns) moravam as vezes famílias inteiras e eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria prende solidamente os homens.
De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo‑se, prestando‑se mútuos serviços. Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte.
Certo, quando assistia a tais cenas, não ficava contente, mas também não sabia refletir por aquele tempo, que, seja entre que homens for, desde que surjam desinteligências, logo rompem os tratamentos desprezíveis mais à mão.
Vi aí, na casa do Rio Comprido, os mais disparatados casos; e, pela manhã, aos domingos, quando me debruçava à janela, olhava brincando no terreiro uma pequenada em que se misturava o sangue de muitas partes do mundo. Em nenhum deles havia o gárrulo e a inocência dos meninos ricos; quando não eram humildes e tristes, eram irritáveis. Facilmente surgia uma rixa entre eles e o choro passava do contendor vencido a ser geral entre todos, com os castigos infligidos pelas mães aos culpados e não culpados.
Admirava‑me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva a viver e por que essa tenacidade é tanto mais forte quanto mais humilde e miserável. Vivia na casa uma rapariga preta que suportava dias inteiros de fome, mal vivendo do que lhe dava uma miserável prostituição; entretanto, à menor dor de dentes chorava, temendo que a morte estivesse próxima.”