FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA # 013: Lima Barreto e a revolta contra os sapatos obrigatórios (uma metáfora da Revolta da Vacina em 1904)
Natureza e data do texto:
É Antonio Candido quem nos ensina em seu Literatura e Sociedade: o texto literário deforma a realidade para realçar melhor determinados aspectos da mesma. Lima Barreto, em seu Recordações do escrivão Isaías Caminha (1908) não trata da Revolta da Vacina (1904). Prefere inventar uma “Revolta contra os sapatos obrigatórios” que é ao mesmo tempo uma metáfora e uma sátira de uma das nossas revoltas populares mais significativas, que praticamente parou a capital da República. De quebra, ainda critica as Reformas de Pereira Passos e acusa o racismo que estava na origem destes planos mirabolantes.
“(cap.X) Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão de amor-próprio nacional e um estulto desejo de não permitir que os estrangeiros, ao voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e a nossa civilização. (…)
‘Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo ?’ (…)
Laje da Silva [empresário suspeito], farejando o que continha de negociatas nos melhoramentos em projetos, propugnava-os com ardor. (…)
Aires d’Ávila [redator chefe do jornal O Globo, na verdade, sátira ao Correio da Manhã] chegou mesmo a escrever um artigo, mostrando a necessidade de ruas largas para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a indústria nacional.
E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.”
[Dona Felismina, a lavadeira da casa de cômodos no R.Comprido onde residia Caminha]
(cap.XI)
“- Diga-me uma coisa ‘Seu’ Caminha: há aí uma lei que obriga todos a andarem calçados?
– Há uma postura municipal.
– Mas é verdade isso mesmo ? Pois então todos, todos ?
– Na rua, é. Por que se assusta ?
– Dizem que as folhas falam nisso e que até, contam aí, que quem tiver pé grande tem que sofrer uma operação para diminuir os pés, como os chinas… É verdade ?
– Qual! É balela! Quem lhe contou ?
Ao sair, ainda ouvi que, pelos corredores, se discutia o assunto com calor, girando sempre a conversa em torno daquela operação chinesa que o governo queria impor à população.”
(cap. XII)
[os positivistas contra a lei, numa conversa entre jornalistas]
“(…) Você leu o Jornal do Comércio ?
– Não. Por quê ?
– O Teixeira Mendes [líder e “ideólogo” do Apostolado Positivista] ataca a lei dos sapatos obrigatórios. Diz que isso de andar calçado, de correção de traje, em última análise, entra no campo da estética, assim no espiritual em que não pode o poder temporal intervir absolutamente… Então é com o papa ?
Os dois sorriram e Floc [crítico literário do jornal] refletiu vagarosamente:
– Eu creio que as coisas vão mal. Há muita irritação, muito azedume por aí…”
[relato do repórter que fazia polícia e ‘Vida Operária’]
“- Vocês não imaginam… As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde… Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor! Por aí vocês avaliam… Creio que há ‘turumbamba’!”
[Isaías Caminha reflete, surpreso diante da revolta]
“A irritação do espírito popular que eu tinha observado na minha própria casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a especial àqueles a quem tocavam e nunca que aquelas observações ingênuas se tivessem transformado em grito de guerra, em amuleto excitador para a multidão toda. Mais tarde, entretanto, verifiquei que a crença de que o Governo pretendia operar violentamente os homens e mulheres de pés grandes, como os chinas, é que tinha impressionado fortemente os espíritos levando-os ao sangrento motim que estalou.” (…)
“Recolhi-me cedo nessa noite e dormi profundamente toda ela. Não vi a destruição dos combustores de iluminação, que os populares tinham levado a efeito. Só a notei de manhã, já pelas oito horas, descendo a ladeira. Na rua, o trânsito era ralo e o tráfego dos bondes parecia ter cessado completamente. Nas esquinas, havia patrulhas de infantaria e cavalaria e de distância em distância, à porta de estalagens, afastados da polícia, havia grupos compactos de populares. Um bonde aproximou-se, e, embora cheio, dependurei-me com dificuldade num dos balaústres. A fisionomia das ruas era de expectativa. As patrulhas subiam e desciam; nas janelas havia muita gente espiando e esperando qualquer coisa. Tínhamos deixado a estação do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas, das portas e do próprio bonde partiam gritos: Vira! Vira! Salta! Salta! Queima! Queima!
O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava cercado por um grande magote de populares à frente do qual se movia um bando multicolor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade. Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da força e da fraqueza do populacho naquela arma ingênua. E por todo o caminho, este cenário se repetia.
Uma força passava, era vaiada; se carregava contra o povo, este dispersava-se, fragmentava-se, pulverizava-se, ficando um ou outro a receber lambadas num canto ou num portal fechado. O Largo de São Francisco era mesmo uma praça de guerra. Por detrás da Escola Politécnica [atual IFCS], havia uma força e os toques da ordenança sucediam-se conforme as regras e preceitos militares. Parei. Um oficial a cavalo percorria a praça, intimando o povo a retirar-se. Obedeci e, antes de entrar na Rua do Ouvidor, a cavalaria, com grandes sabres reluzindo ao sol, varria o largo com estrépito. Os curiosos encostavam-se à porta das casas fechadas, mas mesmo aí os soldados iam surrá-los com vontade e sem pena. Era o motim. (…)
As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado (…)
“Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na Rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. (…) Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; haiva emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.
O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, de inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.”