DIÁRIO de URUCUIA 000 – Quando a festa começa
A moça de oclinhos chegou esbaforida, com a pressa de quem acha que está atrasada:
— Quando vai começar a festa?
Segurando o riso, Deley de Acari aponta para a cozinha onde filhos e filhas de santo preparavam a feijoada de Obaluaiê:
— Não tá vendo? A festa já começou…
Essa é apenas uma das muitas coisas que eu aprendi com o poeta, que me guiou pelos caminhos da favela de Acari. Foi graças à experiência de Acari, com sua mistura de honra, violência, poder e religião que eu consegui ler Grande sertão: veredas, na minha terceira tentativa.
Nem sei quem foi o escritor que disse ao repórter que o tempo que demorou para escrever aquele livro foi a vida toda dele até então. O que importa é que vida é uma travessia composta de várias outras e eu só vou ao Urucuia porque antes fui a Acari e, por incrível que pareça, só fui a Acari porque antes fui à Grécia. E só fui à Grécia… vocês já entenderam.
Se eu subi o Partenon dando gritos de alegria (estava deserto), se eu chegava na casa de Dona Marlene feito um filho branquelo,
não foi menor a minha felicidade ao alcançar as “terras altas” e avistar o rio de águas “claras certas”, o “rio das montanhas”, o “rio de amor” de Riobaldo.
Em 2016 eu inventei de me batizar rosiano e humilde rosiano tenho sido desde então. Os dois anos seguintes foram difíceis mas consegui voltar em 2019, quando nasceu o sonho do projeto “O Urucuia é o meu rio e o Grande sertão a minha casa”.
O Rosinha deu uma ajuda sobrenatural, é claro. Estava eu admirando as águas do Urucuia quando pensei em voz alta: — Ah, como eu queria passear de barco nesse rio. Foi quando um sujeito atrás de mim emendou de primeira: — Eu tenho um barco. Era o Nilsinho, mineiro tranquilo e que me ajudou demais. Marcamos de nos encontrar naquele ponto na manhã seguinte.
Chegando lá vi o Nilsinho, mas quem iria conduzir o pequeno barco a motor era o Cari, barranqueiro de truz, que mora de frente para o Urucuia e conhece todas as manhas do rio. Sim, porque o rio, alerta Riobaldo, também é “bravo” e muita gente morre por não prestar a ele o devido respeito.
Queria fotografar pássaros e Cari me colocou na cara do gol. Papagaios verdadeiros, tucanaçu, corrupião, andorinha do rio e muito mais. Gaviões eu fotografei dois: o Gavião Belo e o imponente Gavião Caboclo.
O mais bacana desse passeio nem foi isso. Resolvi testar a possibilidade do projeto contando a história de Riobaldo e Diadorim para meu novo amigo. Cari ouviu com atenção, tranquilidade e muita compreensão. Gostou. Pronto, estava batido o martelo dentro de mim (essa frase ficou esquisita).
O problema era como começar, eu não conhecia ninguém, ou quase ninguém em Urucuia, mas eu tinha o telefone do Nilsinho, que me colocou em contato com a professora Márcia Cristina e o resto vocês já sabem.
O que vocês não sabem, creio eu, é que eu já estou em Urucuia mesmo estando sentado na sala do meu apartamento em Santa Teresa. Depois de encher os alforges do burrinho de exemplares de Grande sertão: veredas e uma montanha de fotocópias de materiais didáticos. Depois de calibrar os cascos e dar palha aditivada ao burrinho. Depois de preparar a minha matlotagem (brioches com queijo minas, castanha de caju, biscoitos maizena e batatas fritas para comer nos trechos mais difíceis).
Depois disso tudo, eu não acho, eu tenho certeza:
A travessia já começou.
PS: Conforme promessa que fiz a vocês e ao Rosinha, vou publicar aqui o Diário de Urucuia todos os dias, com perdão da redundância. E fazer programas especiais do URUCUIA podcast, o primeiro deles na próxima 6a. feira.