/DIÁRIO de Urucuia 001 – O enigma da empada de camarão

DIÁRIO de Urucuia 001 – O enigma da empada de camarão

Diário do URUCUIA 001 – O enigma da empada de camarão
Não sou supersticioso, apenas um pouquinho rosiano. Por isso, gosto de montar no burrinho e cair na estrada em horas terminadas em sete. Como hoje, em que partimos para Belo Horizonte às quatro horas e sete minutos. Não sem antes comer dois ovos e um sanduíche de queijo minas com um café bem forte.
O caminho, basicamente, é uma montanha russa, um sobe e desce de serras, a começar pela linda serra de Petrópolis. Da primeira vez que fiz a viagem, ali havia uma névoa, uma bruma que lembrava uma das grandes frases (a concorrência é acirrada) de Grande sertão: veredas: “Diadorim é a minha neblina…”.
O sol, esse preguiçoso, só se levantou da cama de estrelas quando eu e o burrinho já havíamos percorrido mais de quinze léguas e estávamos às portas de Juiz de Fora. Cidade que merece uma visita. Antiga “Manchester mineira”, o esplendor da indústria têxtil deixou heranças. Há o belo Teatro Central, a gigantesca fábrica da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas hoje transformada em um centro cultural e uma cidade com um comércio fervilhante no labirinto de galerias do centro da cidade. Há também sebos fantásticos como a Livraria Quarup, onde é preciso se esgueirar em meio a um mar de livros.
Mas passamos ao largo de Juiz de Fora desta vez e fomos em frente. O burrinho, eu e Agripina. Essa moça estranha sempre nos acompanha nas viagens. Tem uma voz maviosa (vou esperar vocês irem ao dicionário) e, sem querer faltar ao respeito, até sensual. O problema é que não sabe conversar, vive sempre repetindo as mesmas coisas: “— Radar detectado à frente” ou então: “— Em 800 metros mantenha sua direita.”
No caminho até BH, lamento informar, havia muito pouco a se observar. Senti falta da natureza selvagem do sertão, só o que se via era capim e umas árvores sem muita convicção. E muitas pequenas cidades com os inescapáveis quebra-molas e pardais. Cerca de uma hora antes de Belo Horizonte passei por uma localidade com tantas barreiras que aconselho sobrevoá-la de helicóptero. Não vou falar o nome mas dou a dica de que ele se encontra cifrado na frase anterior.
Foi engraçado cruzar Santos Dumont, cidade em que “visitei” quando estava prestando meu serviço militar no Exército. Tivemos um dia livre e fomos para a pracinha da igreja, que em 1979 ainda era o coração pulsante da cidade. Claro que queríamos ver e paquerar. Como elas davam voltas na praça, fizemos o mesmo, mas depois ficamos parados só esperando o mundo girar. Elas adoravam saber que éramos cariocas e gostavam muito de conversar, mas curiosamente todas tinham namorados ciumentos, noivos truculentos e pais vigilantes. Tímido, por conta da fama dos cariocas eu quase arrumei uma namorada.
Depois de aproximadamente seis horas e meia, entramos em Belo Horizonte. Quando o menino Joãozito chegou por aqui com nove anos incompletos, a cidade tinha apenas vinte anos de idade e cerca de quarenta mil pessoas. A capital do Estado, fruto de uma decisão política e de planejamento urbano, era um burgo provinciano em 1917. Nesse ano, Joãozito ingressou no Grupo Escolar Afonso Pena (pertinho da Praça da Liberdade). Conservadora em termos de população e costumes, pois quem ousasse falar com uma moça sem ter sido a ela apresentado se arriscava a tomar uma surra de bengala do pai ou dos irmãos, ou de todos estes juntos.
Ao mesmo tempo, a nova capital era um poderoso centro intelectual, depois da criação de várias faculdades, dentre elas a de Medicina em 1911, que depois seria cursada por Guimarães Rosa. Havia uma série de bares, confeitarias e até mesmo de prostíbulos, que funcionavam como ponto de encontro de estudantes, escritores, professores, políticos e pensadores de diversos matizes. O Café Paris era reduto dos poetas simbolistas, o Café Íris, dos torcedores de futebol e todo mundo, mas todo mundo mesmo, frequentava o Café do Ponto.
Esse ambiente fermentou o aparecimento de inúmeros escritores, bastando citar o nome de Carlos Drummond de Andrade, seis anos mais velho do que Guimarães Rosa. Rosa, aliás, costumava dizer que o Drummond é que era mineiro de verdade.
Quando desembarcou do trem em Belo Horizonte, Joãozito, vindo do arraial que à época ainda se chamava Cordisburgo de Vista Alegre, deve ter se espantado com o esplendor da capital. Naquela época, em que quase não havia automóveis, não devia haver problema para o menino passear pelas ruas. Ele morava com o avô materno Luís Guimarães, que também era seu padrinho, numa rua com nome místico: Espírito Santo, 1204. Notar que a soma dos números dá 7, o número preferido de Guimarães Rosa por representar a perfeição: a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) + Os quatro elementos (água, terra, fogo e ar).
Depois de completar sua educação primária, Rosinha foi enviado para São João del Rey mas o filho de Dona Chiquitinha achou a comida muito gordurosa e fez praticamente uma greve de fome até ser tirado de lá. Retornou a Belo Horizonte e aos onze anos foi matriculado na instituição de ensino mais importante da cidade. Fundado por padres alemães, o Colégio Arnaldo, à época só para meninos. A matéria preferida de Joãozito era a Geografia, vindo depois a História Natural (hoje chamada de Biologia).
Sabemos que aos domingos ia estudar na Biblioteca Municipal, levando seu farnelzinho de empadas de camarão e limonada. Mas o enigma permanece: onde ele comprava tais empadas? Não posso dar certeza, mas é possível que as comprasse no Bar Trianon, que não ficava longe da sua casa. Era um dos bares mais famosos da capital e suas empadas de frango e de camarão foram louvadas em prosa e verso por vários escritores ilustres, como Pedro Nava, que as descreveu assim:
“As mais suntuosas empadinhas que já comi no mundo. Eram pulverulentas apesar de gordurosas, tostadas na tampa, moles do seu recheio farto. Desfaziam-se na boca. Difundiam-se no sangue”
Rosinha não era Don Juan, mas gostava de namorar e algo me diz que também devia passar algumas tardes na Praça da Liberdade com um olho no livro e outro nas moças. Logo ele estaria namorando firme uma vizinha com quem se casou pouco antes de se formar em Medicina com 21 anos.
Belo Horizonte foi absolutamente vital na formação de Guimarães Rosa, afinal ele viveu e estudou aqui dos nove aos vinte e um anos de idade. Ele nunca foi de frequentar bares, não levava vida boêmia, por falta de temperamento e de recursos. Mas o rico ambiente literário e político sem dúvida influenciou o jovem vindo de “pequenina terra sertaneja”, ajudando-o a se transformar, anos mais tarde, no escritor Guimarães Rosa.
Em viagens anteriores eu já havia peregrinado aos pontos mais importantes da BH de Rosa, como o Colégio Arnaldo, a Biblioteca Municipal e a Praça da Liberdade. Desta vez resolvi fazer um programa ao gosto dele, mas em lugares que ainda não existiam quando ele vivia por aqui. Primeiro fui almoçar uma comidinha mineira no Mercado Central, esse microcosmo de Minas que deve ter a maior concentração de lojas de queijo do mundo. A refeição foi leve: arroz, tutu à mineira, torresmo, linguiça calabresa e um pouquinho de salada pra disfarçar.
Para digerir fui caminhando – o que em Belo Horizonte significa subir ou descer ladeiras -, até o Edifício Maletta, uma espécie de Babel vertical onde se encontra de tudo. Que tal uma barbearia que anuncia: “Barba, cabelo e prosa”? Mineiro adora. O que me interessava estava na sobreloja: um andar quase inteiro só de sebos. Em uma livraria normal, das duas uma: ou você sabe o que está buscando ou você sabe o que vai encontrar (os best-sellers, os lançamentos etc). No sebo, ao contrário, é o livro que te encontra, estamos no maravilhoso reino do acaso.
Desta vez, por exemplo, esbarrei a “História de Belo Horizonte de 1897 a 1930”, de Paulo Krüger C. Mourão, um volume de quase meio quilo de informações. No Carnaval de 1917, talvez assistido por Joãozito, o Clube Matakins saiu com “comissões a cavalo, banda de clarins, carros alegóricos, de crítica e de fantasia”, dentre eles um que representava um couraçado “com uma tripulação de senhoritas da Capital”.
A imaginação prodigiosa de Guimarães Rosa, que se vangloriava de nunca repetir uma mesma fórmula para suas histórias, sem dúvida deve ter se beneficiado do enorme contraste operado em sua mente infantil com a vinda para Belo Horizonte. Passara os primeiros anos no “Só quase lugar” que era Vista Alegre, onde a grande atração era a chegada das boiadas a serem embarcadas nos trens da Central do Brasil. Ali o menino adquirira “uma noção mágica do universo”. De repente, é enviado para aquela cidade que não parava de crescer e mudar, para aquele redemoinho de novas ideias.
Joãozito é filho legítimo da paz de Cordisburgo, mas se tivesse ficado lá, sem nunca travar contato com o mundo de ideias de Belo Horizonte, talvez nunca viesse a ser João Guimarães Rosa.
(amanhã tem mais)