/Diário de Urucuia 002 – A primeira vereda a gente nunca esquece

Diário de Urucuia 002 – A primeira vereda a gente nunca esquece

Diário do URUCUIA 002 – A primeira vereda a gente nunca esquece
Cada um tem o seu Paraíso. Em Grande sertão: veredas, o Paraíso de Riobaldo e Diadorim dura os dois meses em que permanecem na Tapera Nhã, perto do Guararavacã do Guaicuí, à beira do Rio das Velhas. Desfrutaram de “bondosos dias”, o lugar era bonito, “não se carecia de fazer nada” e Riobaldo teve vontade de ficar ali para sempre. Pássaros, bois e homens vadiavam, comia-se um bom peixe, “pirão com fartura” e dividiam entre eles “cachaça alta”. É o único momento da história em que vemos os jagunços se chamarem de irmãos. Sobretudo, é ali que Riobaldo descobre, de maneira definitiva, “que gostava de Diadorim — de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. Mas ali, naquele lugar tão mágico onde o vento era verde e vinha “com todas as almas”, Riobaldo não sente culpa, não se reprova. Vou parar por aqui para não adiantar um dos episódios do Urucuia podcast.
Este humilde rosiano, por sua vez, não sabe dizer qual é o Paraíso da sua escolha. Mas tem uma certeza: nele os dias começam com um café da manhã de hotel. É a maravilha das maravilhas acordar e se ver diante de uma mesa com frutas, pães, queijos, ovos mexidos e, em se tratando de Minas, linguiça e pão de queijo. Tentei não exagerar, porque era dia de pegar a estrada, mas claro que não consegui.
A cidade grande é uma espécie de redemoinho perigoso de entrar e sair. No caso da Cidade de Minas, primeiro nome de BH, até que a existência de um anel rodoviário ajuda muito e logo você já está na estrada em uma reta que vai dar no sertão. Só que a metrópole se espraia por cidades satélites infinitas. Coitado do burrinho, esteve sob vigilância eletrônica por quase setenta quilômetros, o que fez o bichinho ficar meio mal-humorado. A solução eu conheço, é colocar a trilha sonora preferida dele: o mais puro rock’n’roll da década de 70. O burrinho argumenta que o rock incorpora a dimensão ocidental de uma história linear, sempre em frente, sem parar. Ele gosta de samba, mas não nesses momentos, pois é música circular, ancestral, em que passado e presente se tocam e se fundem, não dá para cair na estrada desse jeito. O que sei é que depois de duas horas de rock ele cansou e pediu para eu colocar “algo totalmente diferente”, senha para que eu mudasse a playlist para rock brasileiro. As duas playlists estão no Spotify para vocês verem que não estou mentindo.
Passar por Cordisburgo e não entrar seria um sacrilégio, mas na volta vou visitar a terra do mestre, prometo. Depois de Cordisburgo vem Paraopeba, terra de Pedro Cardoso, colega de Rosa na Faculdade de Medicina e amigo a vida toda. Dois meses antes de largar este mundo e se tornar eterno, o Rosinha escreveu uma carta ao amigo dizendo que gostaria de visitar a fazenda, se banhar no córrego das Pindaíbas e comer um frango com quiabo ou tutu com linguiça.
Depois de Paraopeba a paisagem começa a mudar, é o sertão que vai chegando. Boa parte do Cerrado, mais da metade, virou pasto ou o deserto verde dos eucaliptos. O Cerrado é um bioma tão sofisticado que demorou 10 milhões de anos para se formar (a Amazônia demorou 4 milhões). Pena que para destruir é mais rápido. Muitos fazendeiros, inclusive, deixam uma pequena faixa de cerrado de uns dez metros de largura (se tanto) correndo paralela à estrada. É a maldade de usar a vegetação do Cerrado como cerca.
Mesmo assim, o sertão impressiona. No vórtice de gentes e mercadorias, além das pessoas-mercadorias e das mercadorias-pessoas, você está sempre cercado de uma multidão e se sentindo mais do que só, abandonado. No sertão, a solidão vira paz e você consegue estar na companhia de si mesmo, pois “sertão: é dentro da gente”. Nesta travessia, tenho buscado a lentidão. Vejo algo bonito ou curioso, amarro o burrinho na beira da estrada e vou lá olhar e fotografar para guardar e mostrar para vocês. O mundo anuncia velocidade o tempo inteiro como quem vende formicida a um bando de saúvas alucinadas.
Devagar e sempre, fomos na direção do “brabo norte”. Antes de onze da manhã, chegamos a Três Marias, onde há a represa da usina hidrelétrica”. Pouco antes da cidade, há um lugar muito especial para mim: foi onde vi minha primeira vereda, depois de mais de 700 quilômetros de percurso. Fiquei feliz em revê-la, estava até mais viva por conta das chuvas do início do ano. Os buritis se erguiam altaneiros.
Escolhi uma pousada à beira do Velho Chico e não me arrependi. Almocei um pratinho com peixe, arroz, feijão, batatas fritas e uns tomates fazendo de salada. Reparei que só depois de dez minutos é que ouvi a música do rio. Nós, os urbanóides, vivemos eternamente com um zumbido que não é preciso abafar e sim diluir em beleza.
Em Grande sertão: veredas, praticamente toda a ação se dá em torno do grande rio, o rio que partiu a vida de Riobaldo em duas partes, o rio que os bandos de jagunços e soldados atravessam mais de uma vez em uma perseguição sem fim. Antonio Candido fez um preciso comentário sobre a oposição (relativa) entre uma margem esquerda profana (Liso do Sussuarão e Veredas-mortas) e uma margem direita sagrada (Guararavacã do Guaicuí e encontro com o Menino).
Tirei a sonequinha de lei e em seguida fui tratar de buscar um barqueiro para passear um carioca no São Francisco. O rio estava grande e um pouco agitado e quando nosso barquinho começou a sacolejar eu lembrei das palavras de Riobaldo: “A aguagem bruta, traiçoeira — o rio é cheio de baques”. Claro que Diadorim também soprava no meu ouvido: “— Carece de ter coragem…”. O problema é esse, eu sou um medroso folgado e com sorte, nunca disse que era corajoso. Por isso é que Riobaldo dizia: “Rio é só o São Francisco”.
Recuperado do susto, tive que tratar de coisas menos grandiosas: fui jantar queijo quente no posto de gasolina, comprar água mineral e calibrar as patas do burrinho para amanhã pois a viagem será longa e, se os deuses forem bons, aportarei em Urucuia no meio da tarde.
Quando já estava encerrando o meu expediente de fotógrafo, vi o que parecia ser um bando de pássaros se aboletar numa árvore. Que prêmio: era um casal de carcarás com seus filhotinhos. Consegui fotografar um carcarazinho fofo mas o mosaico cortou. Vou colocar a foto nos comentários. É a única em que usei filtro, somente para torná-lo mais visível.
Seria mentira, entretanto, dizer que foi o encontro mais bacana do dia. Quando estava indo almoçar, apareceu um daqueles vira-latas clássicos, de pelo mostarda e veio todo pimpão me seguindo e até lambendo a minha mão. Fiz um carinho e logo ele foi adiante. Mas, desta vez, eu é que resolvi fazer um pouco de companhia a ele, senti que era um sujeito legal. Logo o danado entrou numa viela à esquerda, na verdade uma rampa para barcos. Na maior tranquilidade, bebeu água, deu seu mergulhinho no rio e saiu feliz e tranquilo, sem querer mais nada da vida.
Como dizia meu avô Emílio Alvito: “Viver é fácil, saber viver é que são elas”.