Diário do Urucuia 003 – O pão órfão, o cachorro melancólico e o burrinho gaiato
Adoro viajar bem acompanhado. Não me refiro ao burrinho e a Agripina e sim a vocês. Mas preciso avisar: prometo veredas, buritis e rock’n’roll, mas não garanto um mar de rosas. A frase “nada como um dia após o outro” tem ao menos dois significados. Ontem, desfrutei de um banquete matinal. Hoje, ao acordar, descobri que a pousada não servia café da manhã. Meu desjejum? Biscoitinhos e um pãozinho órfão sem queijo ou manteiga. Ainda bem que veio Hermínia, a cafeteira, porque eu e o burrinho não colocamos os pés e patas na estrada sem beber o precioso líquido.
Vamos ao que interessa. Não me deixei abater e fui ver o sol nascer no rio São Francisco. Fiquei de tocaia à beira d’água, só esperando. O astro-rei, todos sabem, é mandrião e temperamental. Mas mesmo antes de nascer ele já pintava lindamente o céu, tudo devidamente registrado em fotos tiradas debaixo de uma árvore onde um passarinho cantava em três tempos. Infelizmente, não sei notação musical mas posso assegurar que o andamento estava mais para mazurca do que para valsa.
Upei no burrinho e lá fomos nós, havia uma distância considerável a percorrer até a Terra Prometida de Urucuia. De um ponto mais alto, flagrei a estrela exibida e vaidosa nascendo acima do Velho Chico. O mais bacana é que havia um manto de nuvens brancas cobrindo o rio. Como se não bastasse, algumas léguas adiante a estrada desapareceu na bruma e o sertão assumiu sua dimensão mágica de forma literal. O rio Abaeté, que Riobaldo chama de “entristecedor audaz de belo” estava praticamente invisível. Foi ali perto que Riobaldo encontrou mais uma vez Zé Bebelo, recebendo dele um conselho fundamental depois de ocorrida a “selvagem desgraça” da morte de Diadorim. Maximé, Zé Bebelo!
O burrinho tira tudo de letra, ou de pata: sol, chuva, névoa do sertão e a neve que não se meta a besta que o pedrês irá trotar por cima dela. Feito o seu homônimo da primeira novela de Sagarana, é “humilde e resignado” e não foge ao cumprimento do dever. Agora, o bichinho é estúrdio, tem suas manias. Do cavaleiro, no caso eu, exige fardamento completo: nada de sandálias havaianas pisando no estribo, no mínimo, um tênis. Gosta de bermudas com tecidos suaves ao toque. Aceita qualquer camisa, mas o boné é obrigatório. Deixa, todavia, eu tirar o boné quando vamos passar pela Polícia Rodoviária, porque os homens da deslei só respeitam sujeito de boné se for o boné deles. E tem mais: parece obediente mas, vira e mexe, apronta: não pode ver uma estrada de terra embora as patas não aguentem o tranco. Viu uma cerca com “não pule a porteira” escrito e ficou todo assanhado.
As maravilhas do caminho não tardaram nesse trecho. Ao norte de Três Marias, vi muito mais veredas do que antes. Pois bem, amarrei o burrinho e fui me encantar com uma veredinha para lá de simpática. Enquanto ajeitava a máquina fotográfica, vi um toco grosso e alto de buriti. Em cima dele, para o meu delírio, um par de araras canindé, uma belíssima espécie que está em extinção. Elas tem a parte exterior da asa de um azul celeste e no lado interno, amarelo forte, um deslumbramento. Era um casal e apesar do bico recurvo davam seus beijinhos. Uma hora os dois abriram as asas e eu fiquei imaginando se era uma D.R. O curioso é que elas não pareciam se importar com a carga pesada de jamantas que passavam por nós fazendo o solo tremer. Deve ser por isso que essas duas sobreviveram: casca grossa.
Tudo corria muito bem, eu até parei para comer um sanduíche de queijo e tomar mais um café. Ali avistei um sujeitinho macambúzio, esses cães de restaurante de posto de gasolina, sempre melancólicos. A alimentação tá garantida, sobra sempre um biscoito, um pedaço de coxinha, um resto de pastel de carne. Mas deve ser duro ficar plantado ali vendo todo mundo embarcar naqueles bichos grandes sabe-se lá para onde. Sem falar que afora um cafuné eventual, falta carinho, não dá tempo de fazer uma amizade.
Em João Pinheiro surgiu uma bifurcação: à direita, estrada para Montes Claros, à esquerda, Brasília. O burrinho nem titubeou: certa vez ficou perdido nos labirintos da cidade de Darcy Ribeiro e jurou nunca mais por as patinhas em Montes Claros. E o caminho era pela esquerda mesmo. Acontece que nessa hora dona Agripina simplesmente tomou chá de sumiço. Liguei para o celular dela e só dava fora de sinal. Sem problemas, era a quarta vez do burrinho no sertão e o bicho é capaz de chegar em Urucuia até de olhos vendados.
Talvez os dois tenham combinado, não sei bem. O fato é que quando eu vi estava em Paracatu, extremo oeste do sertão mineiro, de forma alguma caminho para Urucuia. Riobaldo mesmo diz: “depois de Paracatu é o mundo”. O burrinho, esse gaiato, tinha me pregado uma peça. Como diz um personagem de Sagarana, assim eu fico “esmoralizado”.
Porque eu sempre digo para os meus alunos que agora não sou professor, sou guieiro, aquele que vai à frente da comitiva tocando o berrante e apontando os caminhos para os outros vaqueiros. É que a prosa de Guimarães Rosa é poesia, ambígua, metafórica, sempre aberta novas interpretações. Mais do que decifrar ou explicar, o papel do guieiro rosiano é permitir que os alunos e alunas escolham suas próprias trilhas.
Mas um guieiro que se perde e vai parar em Paracatu fica completamente desacreditado, ninguém mais vai se inscrever nos meus cursos, não posso deixar que venham a saber disso. Tinha que fazer algo. Para começar, uma medida radical, dura: cortei o rock do burrinho. Em seguida liguei para Ambrósia, que trabalha no Guglimap, concorrente do Ueize onde Agripina está empregada. Corrigimos a rota e logo estava no caminho certo.
Essa brincadeira tomou duas horas a mais. As estradas por onde passamos eram bonitas, gostei desse engano. Sempre conto aos meus alunos uma história de um Prêmio Nobel de bioquímica ou física, algo assim, que foi entrevistado por uma jornalista bem jovem. Ela perguntou a ele o que era mais interessante no trabalho de laboratório. Ele disse, sorrindo: — Quando dá tudo errado, porque é aí que se aprende uma coisa nova. Viva Paracatu!
Chegamos em Urucuia no dia vinte e SETE de abril e nos instalamos no ótimo Plaza Hotel. Depois de tomar banho, fui levar os livros na escola, onde eles encheram de cima a baixo uma prateleira com Rosinhas doidos para serem levados pelos jovens e professores. O relógio do carro assinalava mil, duzentos e dezeSETE quilômetros percorridos desde o Rio de Janeiro.
Faltava o fecho de ouro: pôr do sol no rio Urucuia, depois de ter visto o amanhecer do São Francisco. Em dois minutos eu estava no porto da balsa, onde há uma balsa movida por roldanas para levar a balsa para lá e para cá. É um mecanismo manual: um ou mais homens vão puxando a corda. Conversei com o senhor que trabalha ali e que conhece todo mundo, afinal uma hora ou outra sempre há que atravessar. Falou que a balsa existe há pouco mais de vinte anos, antes havia um canoeiro e os cavalos nadavam até o outro lado. Esse canoeiro, já falecido, se chamava Zé do Pó e adorava contar histórias do Caboclo d’água, entidade que é mencionada em o Grande sertão. Dizia que o Caboclo d’água ficava amigo e mesmo compadre se lhe davam fumo e cachaça. Até trazia os peixes para morder o anzol. Caso contrário… virava o barco.
Ainda não terminou. Lembram-se que eu não havia almoçado? O jantar, em compensação foi de gala: peixinho (Piau e Caranha) em pedaços, à milanesa, saladinha de verdade e batatas fritas sequinhas e crocantes. Tudo isso à beira do meu rio Urucuia. Seu Vanderlei, o dono do bar, é uma figura. Conversando diante do olhar atento do seu cão Veludo, me contou sua história. Aos dezenove anos veio de Belo Horizonte visitar um tio e nunca mais voltou. Arrumou uma namorada, “ela quis casar comigo” e pronto. Limpou a área onde está o bar, antes abandonada, e passou a dormir ali mesmo antes da obra estar pronta. Foi amor à primeira vista pelo rio e eu entendo perfeitamente.
Foi assim que um professor coroa, um burrinho galhofeiro e a absenteísta Agripina deram a volta no sol resplandescente. Ele não quis aparecer para a gente no São Francisco, viajamos mais de 500 quilômetros e fomos ver o encerramento do espetáculo no Urucuia.
(amanhã tem mais)