Diário de URUCUIA 005 – O colesterol do papagaio, a vereda salvadora e a Isolda in love
Só pode ter sido coisa dele: o Anhangão, o Dianho, o Manfarro, o Das-Trevas, o Temba, o Satanão, o Não-sei-que-diga, o Xu, o Tralha, o Duba-Dubá, o Grão-Tinhoso, o Arrenegado, o Belzebu, o Cujo ou qualquer outro nome que ele tenha.
O fato é que só pode ter sido ele que armou essa para mim. Como sempre ocorre nesses casos, parecia uma maravilha: acordar cedo e pedalar junto com Nilsinho e uma rapaziada como parte das comemorações dos trinta anos da cidade. Carioca bizarro, cheguei pontualmente às cinco (da manhã). Nilsinho ainda não estava mas já havia um pessoal lá, pronto para “romper” como eles dizem no jargão de ciclista. Olhei para eles: roupas de lycra coloridas coladas ao corpo, capacetes com luzes de boate, bikes equipadas com faróis de milha. Parecia que iriam fazer o tour de France com etapa em Montes Claros. Eu não tinha espelho mas sabia muito bem como estava: calção de ir à praia, camiseta sem mangas, boné azul sem luz alguma, nem de vagalume, e bicicleta idem. A turma disfarçou o melhor que podia o desprezo mortal e partiu pedalando forte.
Finalmente Nilsinho apareceu, também com capacete iluminado e bicicleta com farol. Ainda bem, porque era de noite e embora passem poucos veículos nesta estrada, apenas um já seria suficiente para nos mandar para terra dos pés juntos, perdoem o meu latim. O passeio estava ótimo. Nilsinho, com calma mineira, ia me contando de todas as veredas que deixaram de existir pelo caminho. E de uma ou outra que continua de pé. Apontou uma raposa, mas ainda estava muito escuro e eu só pude desver. Disse que tem muita por aqui, assim como seriema. Havia algumas subidas no trajeto mas nada tão íngreme, eu me sentia inteiro.
Quando estávamos quase chegando, depois de uns 45 minutos de viagem, disse ao Nilsinho que fosse na frente, que eu iria ficar por ali para tirar umas fotos. O sol já estava nascendo e tirei fotogênicos instantâneos de Isolda estacionada, o amarelo contrastando com a escuridão do asfalto e o verde das matas. E eu já pensando nas belas postagens por aqui. “Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade” como é dito no Eclesiastes e o Lobão atualizou para “É tudo pose”. Punição divina ou armação do Capiroto , o fato é que quando fui subir na bicicleta vi que o pneu dianteiro estava mais furado do que as contas públicas.
O jeito era voltar andando. Enlacei Isolda pelo selim e lá fomos nós. Andamos bem uns quarenta minutos até ver a placa: Urucuia – 10 Km. Não desanimei, o problema é que eu não tinha água alguma. O pessoal da bicicletada passou por mim e eu nem me lembrei de pedir. Pra falar a verdade, não deu vontade de pedir, porque senti que estavam achando graça que aquele sujeito tão mal trajado em termos da moda ciclística agora tivesse que voltar usando os próprios pés. Riobaldo avisa: “Homem a pé, esses gerais comem”.
Isolda, usando seus encantos, se arranjou melhor do que eu. O Fiatouro da equipe de apoio se ofereceu para levá-la até em casa. E assim foi. Não quis atrapalhar o namoro dos dois e continuei minha caminhada. Agora, enfim estava a sós com o sertão, pois esse trecho ainda tem bons pedaços de Cerrado. Pena ser cego e surdo para os sons e espécies. Claro que consigo reconhecer o grito quicé cortante do gavião ou a alegre algazarra dos papagaios. Mas ouvi tantos outros pássaros para mim desconhecidos. Sem falar nas espécies de árvores e nos seus frutos: será que aquele parecendo uma bolinha vermelha é comestível?
Só me restava seguir adiante. A sede incomodava. Parece inacreditável mas não havia uma só vendinha em toda essa extensão. O sol, para se vingar de todas as injúrias que tenho lhe dirigido, ia subindo e aquecendo a chapa do asfalto. O motor 6.1 aguenta bem, modéstia à parte, mas a carroceria… Entrei na idade do Condor: com dor aqui, com dor ali… Corri um pouquinho, mas lembrei do pé direito e seus visitantes indesejados: o esporão e a fascite plantar. Sem falar em um pontinho da coluna que ameaça fazer uma blitzkrieg de dor a qualquer momento: #alvitotávelhomesmo2022. Uma coisa não me saía da mente: tenho que chegar a tempo de tomar o café da manhã do hotel, “nem que seja a porrete”, como diria Nhô Augusto.
O Rosinha já ensinou: “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…” Mas era o próprio sertão que não me deixava desanimar. Quanto mais devagar eu andava, mais eu via. Vi meia-dúzia dos severos e carrancudos anus-pretos. Divisei um grupo de carcarás, desta vez adolescentes. E mais um casal de araras canindé no topo de um toco de buriti bem alto. Nilsinho havia me dito que elas colocam seus ovos ali. Por isso, consegui manter um tantinho de bom humor e até tirei foto pra comprovar.
Quando a moral e as pernas já haviam decaído um bocadinho, eu vi uma vereda salvadora à minha esquerda. Tão bonita, deu até para ouvir barulhinho de água. Bastou ver aqueles buritis tão fortes-delicados que eu rejuvenesci aproximadamente duas semanas. O suficiente para chegar até o hotel. Não só ainda serviam café, mas hoje havia queijo e rosca doce, que por aqui chamam de biscoito frito.
Para me alegrar mais ainda, uma senhora que lá estava me mostrou o Dagoberto (eu que batizei), um papagaio que vive à base de ovos mexidos e salsichas. Só fiquei preocupado com o colesterol do bichinho.
Depois de todas essas peripécias, resolvi encerrar o expediente mais cedo. Tomei banho e vim logo escrever esse diário. Porque vocês podem ter certeza, mas certeza mesmo, de que hoje eu não vou fazer mais nadica de nada, neca de pitibiriba, lhufas.
Carioca é bicho muito preguiçoso.