Diário de URUCUIA 008 – A vereda que morde, um cavalo chamado Rodolfo e a fadinha da palha de buriti
Era para ser uma manhã calma. Mas sabe como é carioca, ainda mais carioca ajagunçado. Primeiro o café da manhã que hoje estava desfalcado de manteiga, queijo, presunto e rosca doce nem pensar. Em seguida fui encontrar Dona Vanderlucia, a fadinha da palha de buriti. Ela é uma das duas “sobreviventes” de uma associação de Urucuia que já chegou a ter trinta e cinco artesãos trabalhando em peças de buriti (caixas, esteiras) e em doce feito do côco dessa palmeira sagrada para nós rosianos.
E para Dona Vanderlucia também, para ela o buriti é uma divindade e os pequenos olhos sertanejos brilham ao falar dele. Curiosamente, ela não nasceu aqui, veio para cá há vinte anos, seguindo o marido, mecânico profissional. Ela é de uma cidade que hoje se chama Brasília de Minas, mas que no romance se chama somente Brasília, lugar onde Zé Bebelo derrotou um bando de jagunços e deixou Riobaldo com tudo pronto para fazer a festa e discursar em homenagem a ele.
Dona Vanderlucia com quarenta e cinco anos de idade, era uma dona de casa apenas (o apenas é dela, viu?). Ao chegar em Urucuia, fez cursos na associação e logo notaram a qualidade da sua arte, pedindo que ela se associasse. Hoje ela é uma artesã de buriti completa e reconhecida, com peças que são vendidas também em uma central de cooperativas existente em Arinos (vamos visitá-la e falar dela mais para frente).
Eu a encontrei na APAE, onde ensinava um animado grupo de adolescentes. Estavam inicialmente lixando a palha para poderem fazer as esteiras. Um senhor mais velho, surdo e mudo, ia pacientemente trançando a palha para fazer uma esteira. Dona Vanderlucia dá aulas para eles duas vezes por semana, como voluntária. E o que for produzido ali ficará para a APAE.
Ela explica alguns dos motivos para a progressiva diminuição dos buritis, dizendo que viu um buritizal essa semana que não tinha um broto de buriti, nenhum buriti pequeno. O problema, diz ela, é que são os bichos que comem o fruto e vão espalhando as sementes depois de se alimentarem da polpa. As pessoas levam tudo para casa e jogam as sementes fora. Outra dificuldade que ela tem é que muitos buritizais, muitas veredas, estão em terras particulares e ela diz (sorrindo, marota) que tem que “adular muito os proprietários”.
Vou encomendar com ela umas lindas caixinhas para dar de presente. Quem quiser me peça que mando o contato dela por zap, OK?
Depois disso, nada melhor do que visitar a vereda que morde, a Vereda da Mutuca. Fica a apenas dois quilômetros do centro da cidade, antes de chegar a Urucuia pelo asfalto. Leninha levou a mim e à minha filha lá no ano passado, mas a vereda estava seca, era o mês de julho. Desta vez estava “belimbeleza” e não conheço coisa mais linda nesse mundo do que sombra de buriti nas águas de uma vereda, algo deveras rosiano. Claro que tem foto. A Vereda da Mutuca é, na verdade, o ponto de encontro da cidade nos fins de semana, para comer peixinho, beber cerveja, paquerar e colocar a prosa em dia.
No caminho para lá, uma cena tocante: um cavalo branco, deitado no chão, todo amarrado, estava sendo puxado por cordas para além da cerca da propriedade. Eu parei o carro e desci para ajudar. O animal estava morto, de velhice segundo me informaram. Perguntei ao dono, Seu Cipriano, qual era o nome do bicho. — Era só cavalo mesmo, me respondeu. Perguntei se poderia batizá-lo como Rodolfo e Seu Cipriano riu, o que tomei como uma permissão. Rodolfo, nome que significa “célebre lobo”, nunca puxou carroça, era o bom cavalo de montaria de Seu Cipriano, que permaneceu à sombra de uma árvore, velando o Rodolfo, enquanto o caminhão que iria levá-lo não chegava.
O último compromisso da manhã “tranquila” foi a ida à escola, verificar os últimos detalhes. Mudamos a disposição careta das carteiras para ficar algo mais próximo a um círculo, pois eu sempre gostei de dar aula assim, aumentando a dinâmica e porque em um círculo todos ficam equidistantes do centro e do saber, que, literalmente, pode circular. Fui muito bem ajudado pela incansável Leninha e pela Professora Marley. A diretora, Márcia Cristina, também apareceu para ver se estava tudo de acordo.
Está tudo pronto, prontíssimo, para o início do curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia.
Percebi um sinal de bom augúrio, uma mensagem dos deuses. No na moldura de madeira do quadro negro estava escrito SOUZA, que vem a ser o meu último sobrenome. Velho carioca gaiato que sou, acrescentei de giz:
“Sala do SOUZA”
Não sei como os mineiros me aguentam.