/Diário de URUCUIA 011 – O meu amigo grilo, Riobaldo e Diadorim se banhando na vereda

Diário de URUCUIA 011 – O meu amigo grilo, Riobaldo e Diadorim se banhando na vereda

Diário de URUCUIA 011 – O meu amigo grilo, Riobaldo e Diadorim se banhando na vereda

Estou com um grilo. No sentido literal. Não é nenhum problema. É um grilo mesmo, que resolveu cantar ópera para atrair e cortejar as fêmeas da espécie bem acima do teto rebaixado do meu quarto. Nunca havia dividido um quarto com um grilo antes. Pela força com que ele faz seu chirilim sem parar, durante horas, meu novo amigo deve estar desesperado para arrumar uma namorada. Mas bem que o canto do grilo é um bom fecho para este dia ímpar, remetendo às noites que Diadorim e Riobaldo dormiam sob o céu estrelado do sertão, ouvindo os sons da natureza, um sonhando com o outro.

Sim, porque hoje eu vi Riobaldo e Diadorim. Calma, já explico. Na manhã seguinte à aula eu tinha um bocado de coisas a fazer no computador: escrever o diário e publicá-lo no FB, baixar as fotos e vídeos, responder aos comentários, enviar os vídeos para quem os solicitasse, preparar um episódio do podcast, coisas assim. Passei basicamente a manhã toda fazendo isso. Depois saí para almoçar a bóia do posto de gasolina, que eu saiba a única comida a peso de Urucuia. Fui para casa, tirei a sagrada soneca e acordei me perguntando: o que vou escrever no diário se hoje não houve nada de extraordinário?

Decidi voltar à Vereda da Mutuca, que fica a menos de dois quilômetros antes de chegar na cidade. Amarrei o burrinho na sombra e caminhei um pouquinho até lá. Pensava em ter uma prosa com Seu Cipriano, o dono de Rodolfo, o cavalinho branco. Sei que ele tem boas histórias a contar, mas nem sinal dele. No seu terreiro, vi e cliquei umas lindas galinhas d’Angola, símbolo importante do candomblé. Mas o diário não poderia ser aula de antropologia, tinha que arrumar outro tema.

Alcancei a vereda e fiquei sentado debaixo de um guarda sol de palha, fotografando pássaros. Gosto. Meu amigo José Quental foi meu mestre. Sou mau fotógrafo mas me divirto muito. Passarinho é bicho arisco, vive pulando de galho em galho, isso quando eles não resolvem usar a arma secreta e voar. Muitas vezes saio para fotografá-los e volto com uma porção de fotos de flores, estas sim, leais e quase imóveis (de vez em quando sopra um ventinho). Tinha conseguido as imagens de um ou outro pássaro. Havia um bem-te-vi que não parava de dar rasantes e breves mergulhos n’água, inesperados e velozes, rápidos demais para este fotógrafo. “Mire veja”, se eu disser que um par de araras canindé com seu azul sobre ouro sobrevoou a cena, vocês vão dizer que sou mentiroso.

A vereda é um refúgio não só para os passarinhos, tudo em torno dela respira vida, feito as simpáticas abelhas que fotografei nas margens. As sombras dos buritis no espelho da água deixavam Monet no chinelo. Não podia faltar um gatinho, preto, que não veio mergulhar, Deus esteja, mas sim beber sua aguinha da tarde.

Estava esperando o entardecer, certo de que seria uma cena belíssima.

Quando eu já estava conseguindo fotografar os seres alados, ouvi barulho de bicicleta descendo a ladeira e a gritaria de dois meninos. Donos do mundo, disseram boa tarde e logo depois foram tirando a camisa para entrar na vereda. Confesso que pensei: — Que chato, vão espantar os passarinhos. Mas os dois brincavam nas águas da vereda com tanta alegria verdadeira que me cativaram. E fui conquistado de vez quando um deles falou, como se fosse a coisa mais natural do mundo: — Moço, o senhor não vai entrar? Por acaso eu tinha colocado um calção bom para cair na água ao invés de uma bermuda. Deixei vir o meu menino de 12 anos e lá fui eu me banhar na vereda.

Aí pude reparar melhor e conversar com os dois. Ambos tinham 14 anos, feito Riobaldo e o Menino (Diadorim) quando se conheceram em um porto de rio. Um deles, mais alto e forte, era moreno e meses mais velho, tímido, falava pouco, feito Riobaldo pedindo esmola à beira do De Janeiro. O outro era branquinho, “miúdas feições”, um pouco mais jovem, e totalmente senhor de si, sem medo de nada feito o menino Diadorim. Não faltou nem mesmo o elogio à coragem do pai, segundo ele capaz de pegar uma jibóia do comprimento daquele buriti lá, “o senhor tá vendo?”

São amigos inseparáveis. Riobaldo diz que vai se mudar para São Paulo, a mãe se separou e casou de novo. Diadorim, ciumento, diz que não vai deixar. Riobaldo já é “homem por mulheres” e tem duas namoradas. Quem acusa é Diadorim, que como sempre sabe de tudo. Digo a Riobaldo que quem tem duas namoradas (a Miosótis e a Rosa’uarda?) é porque não gosta de nenhuma. A expressão triste do rosto me responde sem palavras. E Riobaldo, feito seu homônimo do Grande sertão, não sabe nadar…

O pôr do sol? A “roséia daquela cor”, “os buritís calados”. Daria para cobrar ingresso, mas nem todo o dinheiro, tecnologia e poder desse mundo são capazes de fabricar tanta beleza. Era nesse cenário de sonho que aqueles dois se divertiam, meninos que são. Me pus a sonhar com uma realidade ficcional paralela (não gosto de usar esses termos de americano) em que Riobaldo e Diadorim fogem para Urucuia e vão gastar a tarde na Vereda da Mutuca.

A minha tarde foi iluminada por aqueles dois.

Sem falar que me salvaram: agora tinha algo para contar.

Porque esse povo do foicebúqui quer diário todo dia, cheio de histórias.

E boas fotos.

Como diria Riobaldo: “— Pois não sim?”

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