Diário de Urucuia 027 – A nova atração do Urucuia, o labirinto e o oceano, como lançar garrafas ao mar
Acordei cedo, disposto a ir até o rio, ver se já haviam instalado uma pista de patinação no gelo no Urucuia. Por incrível que pareça, esta noite foi mais fria do que a anterior e no café da manhã só se falava disso. Mikaele jurava que nunca tinha feito tanto frio por aqui, ainda mais em maio.
Eu aproveitei a desculpa da baixa temperatura para ficar no acampamento, tinha muito o que fazer: escrever, gravar o Urucuia podcast e tentar me organizar um pouquinho. O almoço de hoje no posto foi ótimo: feijoada vendo programa esportivo e chicabom de sobremesa. Deixei a Cláudia, dona do estabelecimento, de sobreaviso para chamar uma ambulância caso eu virasse um homem de gelo ao chupar o picolé. Vou ter que inventar de fazer alguma coisa depois do almoço caso contrário esse diário será pífio, está cada vez mais difícil engrupir vocês.
O prato principal de hoje será a sexta aula dada para a turma dos estudantes junto com três componentes da Companhia Teatral Grande sertão. Antes de vir para cá fiquei meses pensando em como aproveitar oito aulas de oitenta minutos para apresentar minimamente a obra a um público que nunca lera uma linha sequer de Grande sertão: veredas ou de qualquer outro livro de Guimarães Rosa.
Partindo da premissa de que é um livro ao mesmo tempo labiríntico na forma e oceânico no significado, adaptei a proposta à filosofia dos meus cursos, em que lemos e debatemos o livro da primeira à última palavras do texto. Ou seja, o meu enfoque seria intensivo e não extensivo. Decidi que iria ler algumas partes do livro mas do jeito que o Rosinha queria: lentamente, ruminando os significados, prestando atenção à poética, à metafísica e sem muita preocupação com o enredo. Ao mesmo tempo, tinha que fornecer uma espécie de “mapa” da narrativa para que eles não se perdessem totalmente, sobretudo para que não ficassem atolados no “Pântano narrativo”, grosso modo os primeiros cento e cinquenta parágrafos em que a história é contada totalmente fora da ordem cronológica.
Depois de muita reflexão, decidi dividir o curso em quatro partes, cada uma com duas aulas. Na primeira, comecei a ler o livro desde “Nonada”, mostrando o conteúdo filosófico e metafísico daqueles causos iniciais: o Aleixo e seus filhos, Pedro Pindó e sua mulher castigando o Valtêi, a mandioca boa que vira má e vice-versa. Mostrei como através destas pequenas histórias o velho fazendeiro vai apresentando ao doutor as suas questões centrais: o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, a possibilidade de se fazer um pacto com o Demo ou não etc. Aqui a proposta era ir aclimantando a turma à sintaxe rosiana e à percepção da ambiguidade sempre presente: “tudo é e não é”. Esta parte foi a mais difícil, onde eu tive sempre a preocupação de explicar cada termo mais abstrato através de exemplos concretos relacionados à vida deles. Usei e abusei de pequenos improvisos dramáticos em que eu representei situações, de preferência engraçadas, para ajudá-los a imaginar e entender os conceitos. Distribuí também duas folhas didáticas: uma sobre os três sertões (geográfico, existencial e transcendente) do sertão rosiano e outra explicando o título do livro.
As aulas três e quatro foram dedicadas ao episódio de Riobaldo e o Menino na travessia para a outra margem do São Francisco. O próprio narrador aponta esse encontro como o primeiro “fato” que “se abriu”, descortinando para ele uma nova visão do mundo e do viver, sem falar na descoberta do desejo e do amor. Achei que seria, como foi, muito impactante junto a uma turma de adolescentes. A ênfase nesta segunda parte era, além de continuar a reconhecer as grandes questões, aprender a saborear a prosa poética do autor. A turma ficou encantada com a história, somente aí é que pude sentir que haviam sido fisgados, de que surgia neles um desejo de leitura. Por falar nisso, mais da metade dos estudantes normalmente se recusa a ler, creio que por vergonha. Dentre os que lêem, é difícil encontrar quem consiga fazer uma leitura que não seja meio que soletrando sílaba a sílaba. São alunos dos dois primeiros anos do Ensino Médio, mas em uma avaliação sem paternalismo, diria que na maioria dos casos ainda não têm capacidade, habilidade ou domínio suficientes para ler um livro, não importa qual. Isso não foi barreira, todavia, para que se interessassem e muito pela história. Com um bom e continuado trabalho, Grande sertão: veredas pode cumprir o papel de transformá-los em leitores competentes. O meu objetivo nessa segunda parte acho que foi alcançado: mostrar o quanto de prazer pode existir em um bloco de papel com páginas cobertas de tinta.
A terceira parte, composta pelas aulas 5 e 6, foi totalmente diferente das anteriores. Aqui, trabalhei com um Resumo da vida de Riobaldo elaborado por mim. Fomos lendo as quatro páginas, item a item. Eu ia parando, explicando e dando mais detalhes acerca dos acontecimentos, que foram colocados em ordem cronológica ao contrário do que ocorre na obra. Os trechos do “Pântano narrativo”, que saltam por toda a vida de Riobaldo até depois da morte de Joca Ramiro, foram sublinhados, para que eles possam reconhecê-los durante a leitura. Nesta etapa a turma se deliciou com a “contação de histórias” continuada, ao mesmo tempo adquirindo uma noção da totalidade fundamental ao se ler um livro com uma estrutura tão complexa e truncada. Para ajudar mais ainda, além do “mapa” dos acontecimentos, forneci também mapas propriamente ditos, fotocopiados do excelente grandesertao.br (não é um site é o nome do livro) de Willi Bolle. Os mapas 5 a 7 deste livro permitem acompanhar todas as andanças de Riobaldo e Diadorim pelo sertão. Em uma avaliação após a segunda aula desta terceira parte, os alunos se disseram interessados em ler a obra e acreditam que com os materiais que lhes foram entregues o conseguirão.
A última parte, as aulas 7 e 8, será dada na semana que vem. Voltaremos ao texto, lendo o episódio da morte de Diadorim no Paredão e o que se segue até as últimas reflexões de Riobaldo acerca do Diabo, do Pacto e da sua culpa ou não. Além de ser um trecho decisivo, que explica inclusive o porquê do velho fazendeiro estar contando sua história ao doutor, há uma tentativa de resposta para as grandes questões que assolam Riobaldo. Sem falar na alta voltagem poética de passagens como a de Riobaldo diante do corpo nu de Diadorim ou da sua busca de informações acerca do seu grande amor. Em termos psicológicos, pois isso também conta, tendo lido o começo, um trecho do miolo e o resumo de toda a história, sem dúvida terão uma maior proximidade com a obra.
Não tenho a menor ideia do que irá acontecer, de como esses meninos e meninas irão se apropriar do livro. O professor é o sujeito que vive a encher garrafas com desejos de um futuro melhor, mas nunca sabe se alguma delas irá chegar à costa.
Depois da aula, convidei o pessoal da Cia. Teatral Grande sertão para lancharmos juntos. E já começamos a elaborar planos de cooperação, sugeri a eles dois ou três trechos do livro que poderiam ser transformados em ótimas peças.
Haja o que houver, já estou animado pensando em realizar esse trabalho (melhorado) em outra cidade do sertão mineiro no ano que vem.
Afinal, enquanto eu tiver braço, garrafas e papel, não pararei de lançar minhas esperanças ao mar.