/Diário do URUCUIA 006 – Gaúchos no sertão e as três pragas de Arinos

Diário do URUCUIA 006 – Gaúchos no sertão e as três pragas de Arinos

Diário do URUCUIA 006 – Gaúchos no sertão e as três pragas de Arinos
Riobaldo não era lá de ter muitos amigos. Afinal, tirando Diadorim, ele estava no meio de uma jagunçada braba, tinha até quem afiava os dentes à faca para parecer bicho e assustar os inimigos. Mas, no dizer de Riobaldo, ele se acompanheirou de alguns com os quais o anjo-da-guarda combinava. E de muito poucos se tornou mesmo amigo: além de Diadorim, mais que amigo, os mais próximos dele eram o Alaripe e o Fafafa. O Alaripe era um jagunço experiente e sábio, um cearense sagaz e valente, muito leal a Riobaldo mesmo quando o último se tornou um chefe selvagem e violento. O Fafafa era conhecido por seu amor aos animais, dos quais cuidava com afeição, devidamente retribuída: quando deitava os cavalos vinham cheirar o rosto dele. Riobaldo não diz de onde era o Fafafa, mas dois detalhes permitem adivinhar a sua origem. Um dia, numa venda, perguntou se não tinham chá mate, obviamente para fazer o chimarrão. Em outra passagem, Riobaldo descreve como Fafafa preparava seu churrasco, no famoso fogo de chão:
“A ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação de carne escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a ponta do facão, só pelo chiar.”
Para resumir bem resumido: o Fafafa era gaúcho. Tudo isso serviu de introdução ao diário de hoje. Depois do café da manhã, fiz as pazes com o burrinho, que não aguentava mais ficar na cavalariça sem dar um passeio. Para piorar, segundo me disse, passou a noite toda ouvindo as músicas breganejas do show de aniversário da cidade. Achei que já era punição suficiente para um burrinho roqueiro e o convidei a me levar até a Chapada Gaúcha. Como assim? Existe, é um município mais ao noroeste, a 137 quilômetros de distância de Urucuia, uma molezinha.
O núcleo original do povoamento foi a Vila dos Gaúchos, criada com a chegada dos primeiros colonos em 1976. Menos de vinte anos depois era criado o município de Chapada Gaúcha, em 1995. Que é uma chapada não há a menor dúvida. A viagem até lá é praticamente uma reta com meia-dúzia de curvas. É um tipo de relevo extremamente apropriado para a agricultura.
No caminho, vi pra lá de dez gaviões, infelizmente não sei dizer a espécie exata, mas achei curioso ver essas aves no meio da estrada. Deve haver algum motivo, provavelmente alimentar, para elas fazerem isso. Também vi uma ou outra vereda, mas isso no início do caminho. À medida em que eu e o burrinho nos aproximamos da cidade, só se viam campos infinitos invadindo horizontes. Os três principais cultivos são capim, milho e sobretudo soja.
O percurso foi para lá de tranquilo: em duas horas de viagem, ultrapassei apenas uma moto, dois carros, um caminhão e um trator para completar o álbum. Finalmente cheguei no centro. O caráter fortemente rural é bem simbolizado logo na entrada da cidade, onde há dois enormes silos metálicos bem em frente à avenida principal.
O município tem quase 14 mil habitantes, mas, pelo caráter acanhado do centro, creio que a proporção de população vivendo no campo deve ser alta. Mesmo na rua principal, o que mais se vê são empresas que oferecem serviços técnicos de apoio à agricultura: serviços agroveterinários, venda de adubo, georeferenciamento, cadastro ambiental, planejamento agrícola, sementes, venda de tratores (inclusive por consórcio) e por aí afora. Isso quase não se vê em Urucuia.
Até aí, tudo bem para um município de vocação agrícola acentuada. O próprio aniversário da cidade foi transferido para o Dia do Agricultor, a identidade de Chapada Gaúcha é clara. O que eu não esperava era encontrar o que encontrei: em plena rua principal uma funerária com letreiro imenso, chamativo, até com slogan: “Seria bom não precisar, ao precisar é bom ter”. Mas não foi só isso. O estabelecimento constava de vários setores: setor administrativo, setor isso ou aquilo e também, pasmem, uma barbearia, com título em inglês, é claro: barber shop. Esclareço que é uma barbearia para o pessoal que ainda está do lado de cá. Sim, tem foto para os que duvidam de tudo.
Essa “delicadeza” toda me lembrou do Analista de Bagé do nosso Luiz Fernando Veríssimo. Curiosamente, não havia nenhuma loja, lojona ou lojinha em que aparecesse o nome “gaúcho”. Até encontrei o típico produto da diáspora gaúcha: o Centro de Tradições Gaúchas Chama Crioula. Mas parece que a chama está apagando. O CTG só faz eventos mornos uma vez por mês. Segundo me disse a dona de um supermercado, gaúcha que veio aos seis anos morar aqui, hoje em dia há poucos gaúchos na Chapada, cerca de mil. Ela mesma disse já se sentir mais mineira.
Seja lá como for, a Chapada Gaúcha é o nono PIB de Minas Gerais, lembrando que o estado tem 853 municípios. Um índice claro dessa riqueza é a existência de um banco (privado), coisa que Urucuia, com mais população, não tem. Seu IDH é superior ao de Urucuia e sua taxa de escolarização dos 6 aos 14 anos é de quase 98%.
Além da riqueza material, o enorme município ainda tem uma natureza exuberante: é ali que fica o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Na alameda central, há ótimos banners anunciando morros, cachoeiras, rios, veredas e até o Vão do Buraco, desfiladeiro que é citado em Grande sertão: veredas. Na verdade, o município tem várias comunidades agrícolas e até um quilombo. Infelizmente, a maioria desses locais fica longe e seu acesso se dá exclusivamente por estradas de terra, inacessíveis ao meu burrinho. Mas nos banners havia telefones de um guia turístico, talvez seja possível contratá-lo para ir na Vereda do Feio (linda!), no Rio dos Bois ou na Cachoeira do Acari.
A prova final de que é uma cidade totalmente ligada à vida do campo: a senhora, também gaúcha, dona do restaurante de comida à peso me informou que começam a servir às dez horas da manhã. Olhando lá para dentro, já vi a comida fumegando. No que se constitui em um verdadeiro milagre, eu não estava com fome.
Por isso, montei no burrinho e comecei a fazer o caminho de volta. Parei e desci do carro para fotografar o simpático Ribeirão da Areia. Decidi almoçar em Arinos, que fica no caminho, pois lá há um ótimo restaurante. Sobre Arinos eu falo outro dia, por enquanto basta saber que é aproximadamente do tamanho de Urucuia mas é mais rico, com mais comércio, bancos, escola técnica agrícola e até duas rádios. Dispõe até de três pragas urbanas: o pardal, o quebra-molas e a Igreja Universal do Reino de Deus. Seja como for, sua renda percapita perde para a Chapada Gaúcha.
Dei sorte: hoje era dia de feijoada e a limonada (Joãozito adorava, já disse) estava ótima. De lá, partimos para o nosso acampamento em Urucuia. Na estrada, olhando o céu azulão cheio de nuvens dignas de Salvador Dali, me dá um calor. Tenho a impressão de que é um irmão mais velho esperando na rodoviária para me dar um abraço.
Ah, antes que me esqueça: Arinos já se chamou Barra da Vaca, isso sim um nome verdadeiramente rosiano.
É a cidade acabando com o sertão.
(preciso dizer que amanhã tem mais?)