Diário do URUCUIA 007 – Aton-Rá, Carcará e suco de Maracujá
“Porque em certo lugar disse assim do dia sétimo: E repousou Deus de todas as suas obras no sétimo dia.”
Hebreus 4:4
Cês tão vendo. Até o Onipotente, o Todo-Poderoso, o Onisciente, Aquele-que-criou-o-Céu-e-a-Terra, até Ele descansou no sétimo dia.
Mas bem que vocês querem que eu faça um diário de hoje, não é mesmo? O problema é que o domingo em Urucuia é quase morto. Nem café da manhã no meu hotel tem. No sábado tive que comprar um iogurte e um requeijão, este último, aliás, adorado pela jagunçada, segundo Riobaldo: “Requeijão é com café bem quente que é mais gostoso.” Não havia queijo, queijo é raridade nos supermercados daqui. Tinham somente isopor ralado, a tal da ricota.
Na verdade, pensei em ficar o dia inteiro recolhido preparando os meus cursos da semana, vejam só o programa:
2a. feira: “Lalino Salãthiel” com o Bando Sagarana via Zoom;
3a. feira: A primeiríssima aula do curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia para alunos e alunas da E.E. Antonio Esteves dos Anjos;
5a. feira: Grande sertão: veredas com o Bando Diadorim via Zoom;
6a. feira: Segunda aula para os alunos e alunas da E.E. Antonio Esteves dos Anjos;
Sábado: A primeira aula do curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia para professores de Urucuia e região.
Que tal? É pouco?
Mas, como diria Zé Bebelo, “sem agências de adulação”, “sempre eu cumpro a palavra dada” de levar vocês para fazer essa travessia do sertão comigo, com o burrinho e a traiçoeira Agripina. Pela linda noite estrelada, nem era preciso consultar o Climatempo para saber que o dia seguinte seria de sol inconstestável. E bem que eu estava precisando fazer as pazes com o esplêndido, fabuloso, sublime Helios, Ravi, Guaraci, Hinata, Inti e Aton-Rá. Ficar de bem com o Bola-de-fogo é fundamental, vide Ulisses, que viu seu navio ser destruído por Zeus depois que seus homens mataram e comeram o gado de Helios. Só Ulisses sobreviveu, sob a doce proteção da ninfa Calipso, com quem viveu sete anos, mas recusou a oferta de imortalidade e quis voltar para Ítaca. É por isso que Homero chamava os homens de “comedores de pão”. Mas isso é outra história, voltemos para o sertão rosiano.
Eu tinha que pensar em um ritual de adoração solar para limpar a minha barra. Nada melhor, portanto, do que saudá-lo quando começa a iluminar a terra urucuiana. Devo avisar que é uma cena para os fortes e para as fortes. Claro que para isso acordei às quatro da manhã, porque não iria sem tomar banho e fazer a barba, sem falar no café da Hermínia e nos pãezinhos com requeijão. Como já disse antes, Urucuia é um pontinho de cidade em meio a um mar de fazendas e de Cerrado. Para chegar no sertão basta ir até o fim da Avenida Tancredo Neves e se embrenhar um pouquinho na estrada de terra que vai até Pintópolis (sem rir, por favor). São apenas 73 quilômetros de buraqueira até você poder pegar a barca e atravessar para a margem direita do Velho Chico. Quando o burrinho era jovem e impetuoso, nos idos de 2016, fizemos essa travessia.
Para ver o astro máximo nascendo, todavia, bastou andar alguns quilômetros com o burrinho por essa estrada que te deixa no meio do Cerrado. Não sem antes calçar minhas botas, que se chamam somente botas mesmo, pois são muito pé no chão e não gostam de ser rebatizadas. Mas há que respeitá-las: passearam pela Andrequicé de Manuelzão, visitaram a sagrada Cordisburgo, andaram pela cidade preferida do Velho Chico, a linda São Francisco, foram até Januária, terra da cachaça azulada, pisaram o chão de pedra de Grão-Mogol, subiram a Campina de Botumirim e por aí afora.
Sabe quando a abertura do show é melhor do que a atração principal? Desta vez foi assim, o espetáculo maior nem foi o sol explodindo em luz em pleno sertão. Claro, foi lindo, espetacular, sensacional, maravilhoso (vai que ele fica zangado). Vinte minutos antes, todavia, o céu era uma paleta de cores: amarelo, rosa e púrpura (claro que tem foto). Lembrei da aurora de róseos dedos de Homero (hoje estou pra lá de homérico). E que delícia foi essa espera no friozinho da madrugada, ouvindo sem ver os pássaros, no meio de uma estrada de terra quase deserta. Paz.
Bem, tiradas as fotos dei o expediente por encerrado. Só que eu não podia deixar de fotografar o casal de carcarás no meio do caminho. No meio do caminho havia dois carcarás, agora já são três. Confirmei a minha hipótese de ontem: eles vão para a estrada comer. E por falar em comer, aqueles pãezinhos já não estavam mais fazendo efeito. Por isso parei na Feira Agrícola Familiar no canteiro central da avenida principal (e única). Alface, abóbora, couve e outros legumes, cogumelos, tudo com uma cara muito boa. Mas eu fiquei de olho mesmo foi na barraca de pastel. Mandei vir um de queijo e um refresco de maracujá com sabor de suco. Total da despesa: seis reais. Repeti o suco, será que eu mereço.
Não adianta chorar, nem espernear, nem chamar Joca Ramiro, esse diário termina por aqui. Vou fazer nada um pouco e depois preparar as aulas da semana. Se quiserem protestar, reclamem com o Todo-Poderoso:
“Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus.
Porque aquele que entrou no seu repouso, ele próprio repousou de suas obras, como Deus das suas.”