/Diário do Urucuia 009 – Espandex, método rapadura, um bocadinho de numerologia rosiana e o dia do primeiro dia

Diário do Urucuia 009 – Espandex, método rapadura, um bocadinho de numerologia rosiana e o dia do primeiro dia

Diário do Urucuia 009 – Espandex, método rapadura, um bocadinho de numerologia rosiana e o dia do primeiro dia

Tem quem salte de um arranha-céu preso numa cordinha (bungee jumping). Tem quem corra, pedale e nade durante horas e horas (triatlon). Tem quem sobrevoe a cidade em asa delta, ultraleve, parapente. Tem quem faça “pega” de carro ou de moto. Tem quem cruze o Atlântico numa canoa (Amir Klink). Tem quem goste de nadar em meio aos tubarões. Tem quem goste de participar de torcida organizada só para bater e apanhar da polícia e de outra torcida (são a minoria, mas existem). Tem quem ache que é pássaro, vista uma wingsuit e tente sair voando. Tem quem surfe ondas de até vinte metros ou mais.

Todo mundo buscando a emoção? Talvez seja, mas a palavra vem do latim emovere, significando algo que nos move. Mas nos move de dentro para fora e não de fora para dentro como nos exemplos acima.

Há quarenta anos que pratico um outro tipo de esporte radical, que me emociona, me move de dentro para fora. Há quarenta anos aprendo a ser professor. Professor que acha que primeiro deve aprender para depois ensinar não serve. Acaba aprendendo meia-dúzia de coisas e depois ensinando os outros a vida toda, eles queiram ou não. Riobaldo já dizia: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.” E como eu tenho aprendido com meus alunos.

1982. Primeiro, ia até o “aeroporto da Baixada”, como o pessoal chama o terminal de ônibus da Praça Mauá. Ali, tomava um “tarifa” (ônibus mais caro, com ar condicionado) para São João de Meriti, cidade do Grande Rio. Saltava no bairro de Vilar dos Teles, à época um centro flamejante de pequenas manufaturas têxteis, sobretudo de jeans espandex, um tecido que mistura algodão e fibra elástica para modelar e valorizar o corpo. Aquilo era meio contraditório com a presença de uma avenida inteira de templos evangélicos, alto-falantes tagarelando sem parar a convocar o rebanho. Me esgueirando entre salmos e louvores, caminhava mais ou menos um quilômetro até chegar à minha primeira escola, aos meus primeiros alunos, esses que tiveram a árdua tarefa de irem transformando um menino de 21 anos em professor.

1984. Dois anos depois veio a inesperada aprovação como professor da universidade do outro lado da Baía. Tinha tanta cara de guri que quando disse que aquela não era uma aula trote uma aluna pensou que fosse o contrário se levantou gritando: — Eu sabia, eu sabia. É muito difícil resumir 32 anos de descobertas. Sei que fui da Grécia antiga até o Brasil contemporâneo, passando por Egito, Mesopotâmia, Idade Média, em uma trajetória hoje impossível de ser repetida dado o modelo da super-especialização. Os temas também foram muito variados: da tragédia grega até as religiões neo-pentecostais em guerra com as afro-brasileiras, o futebol inglês, a favela carioca, a história do samba, o Rio de Janeiro de Machado de Assis e João do Rio e muitos outros cursos.

A minha relação com os alunos era baseada no método rapadura, que é doce mas não é mole não. Sempre dizia a eles que não eram mais estudantes, eram profissionais em formação. Procurei ser exigente, mas não somente com eles, comigo também. Sobre a academia, seus rituais e obsessões, digo somente que nunca me acostumei com eles, sempre fui o outsider, o rebelde, o inconformado, com todas as consequências possíveis. E até alguma inimagináveis do tipo ser colocado duas vezes para dar aula em uma sala sem portas defronte a uma obra em andamento. Mas, estamos quites, a academia me deu uma formação e a possibilidade de um trabalho inesquecível. À academia, eu dei toda a minha juventude e parte da meia-idade. Trinta e dois anos de vida. É pouco?

Além da academia, dava aulas e palestras em outros lugares, quase sempre sem receber pagamento monetário. Não vou mencionar as palestras acadêmicas. Conversei com homens detidos em uma penitenciária sobre a democracia ateniense, contrastando o julgamento de Sócrates com o Tribunal do Júri, que muitos haviam frequentado na qualidade de réus. Contei a história da Guerra de Tróia em um jardim de infância, estabelecendo como prova final um desenho (meninos desenharam as muralhas de Tróia, as meninas desenharam o julgamento da mais bela deusa). Dei um curso sobre a violência e o racismo da polícia contra os pobres para oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro durante oito anos, no que foi uma convivência pacífica, respeitosa e muito frutuosa. Ofereci um curso de História Oral à comunidade do Quilombo Buriti do Meio, em Minas Gerais, para tentar ajudá-los a preservar a rica tradição oral que têm. Chamado à Escola de Magistratura critiquei as práticas racistas do Tribunal do Juri e comentei acerca da corrupção do Judiciário. Dei uma aula sobre comunidade para a maravilhosa TV Maxambomba, uma TV comunitária de Nova Iguaçú. Para os jovens da favela de Acari, falei de cidadania. Para os jovens de classe média do São Vicente, falei da favela. Enfim, fui onde me chamavam e onde eu achava que poderia ajudar de alguma forma.

2016. Depois do glorioso curso sobre Grande sertão: veredas, o último, era o momento de ultrapassar os muros da universidade e cair na estrada, literal e metaforicamente. Sabia aonde ir: ao sertão de Rosa. Me batizei em Urucuia em 2016, em 2019 voltei e comecei a fazer os contatos para realizar um curso voltado para os meninos e meninas de Urucuia. Em 2021 mostrei o sertão e o rio Urucuia para a minha filha e com ela vim trazer os primeiros exemplares doados para o Projeto “O Urucuia é o meu rio e o Grande sertão é a minha casa”.

Esse parangolé todo é por conta do fato de que HOJE, 3 de maio começa o curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia, pontualmente às 17:30. Rosiano que sou, não posso deixar de fazer considerações numerológicas. O número 1 é o dia do meu aniversário em outubro. 7 é o número da perfeição rosiana. E o 3, além de também ser número místico, juntamente com o 7 sempre foi o meu número preferido. Sem falar que estamos em maio, mês sagrado por excelência, em que Rosa conheceu Aracy e Riobaldo conheceu Diadorim na forma do Menino.

Rosianismo à parte, eu digo, sem temor de estar exagerando, que quarenta anos depois daquela primeira escola em Vilar dos Teles, continuo sentindo algo que me move de dentro para fora. Permaneço na expectativa de entrar novamente nesse lugar mágico e imprevisível de diálogo, de trocas, de aprendizagem.

Como eu digo aos meus alunos, já que não deu para ser surfista, decidi ser surfista das idéias.

Pois no mar agitado da sala de aula tem sempre onda grande.

(no diário de amanhã eu contarei como foi a aula)

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Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

Inscrições abertas: marcosalvito@gmail.com – apenas 25 vagas

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