/Diário do Urucuia 010 – Duas canoas, o encontro do guieiro com sua turma de vaqueiros e o brinquedo de Joãozito

Diário do Urucuia 010 – Duas canoas, o encontro do guieiro com sua turma de vaqueiros e o brinquedo de Joãozito

Diário do Urucuia 010 – Duas canoas, o encontro do guieiro com sua turma de vaqueiros e o brinquedo de Joãozito
É sempre bom lembrar onde essa travessia começou. Primeiro veio o rio que me enfeitiçou, o rio que “das montanhas”, o rio de águas “claras certas”, o rio que, como os outros, nunca dorme. Por isso, para me preparar para a primeira aula do curso LENDO Grande sertão eu busquei uma sombra à beira do meu Urucuia. Ali eu pronunciei em voz alta, encantamento, magia, as palavras, os sons e os sentidos dos primeiros passos do Grande sertão e de suas veredas. Me deixei ler pelo livro, acalmei meu coração e me fiz um com o fluxo das águas.
Tendo cuidado da alma, fui cuidar do corpo. Seu Vanderlei preparou um feijãozinho enquanto eu fazia minha meditação rosiana. Convidou também o arroz, um prato vistoso de salada e o Caranha, que veio frito em pedacinhos à milanesa. Por ser dia especial, me permiti um guaraná. Para não perder o hábito, tirei fotos do rio, de um lagartão imenso, das canoas que sempre me lembram a terceira margem e até do homem da balsa remando sua canoinha para vir almoçar.
Fui para casa tirar a soneca de lei, guardar energia para gastar na aula de mais tarde. Como sempre, cheguei à escola uma hora mais cedo, inclusive para preparar o material de filmagem, pensar as estratégias in loco. Mas eu não estava preparado para a outra canoa. Lindamente feita de madeira por uma artesã local, com mais ou menos 30 cm de comprimento, ela estava em cima da mesa do professor, com um delicado exemplar de bolso de GSV de capa branca e florida.
Mas não parava por aí. A sala toda estava decorada. Havia um isopor na parede do fundo com frases rosianas. Os exemplares a serem distribuídos estavam em caixas de buriti. Também no fundo da sala havia um manequim representando um sertanejo. Em uma parede lateral, mais uma surpresa, um cartaz com uma foto minha colorida (felizmente bem mais novo rs), com palavras de boas vindas que me deixaram totalmente emocionado. O meu muito obrigado a todas as professoras que armaram com carinho essa emboscada de hospitalidade urucuiana-mineira para a qual eu não estava preparado: professoras Maria Madalena Chaves Dos Anjos , Marley Aguiar, Márcia Cristina e outras. Não mereço, mesmo assim agradeço.
Hora de trabalhar. Mas cadê os alunos? A hora passava e ninguém chegava. Até avisei às professoras que se os alunos não viessem eu iria colocá-las em sala porque aquela aula eu precisava dar de qualquer jeito. Mas eles vieram sim. Atrasadinhos, tímidos mas muito simpáticos meninos e meninas de 15, 16 anos, somados a alunas mais velhas que estão completando o Ensino Médio. Além disso, veio a trupe bacana da Cia. Teatral Grande sertão, que apresenta espetáculos mesclando a obra rosiana com as tradições orais urucuianas (ainda vou falar mais deles depois).
Mesmo com a presença de adultos, procurei adequar a linguagem aos adolescentes, tentando traduzir os conceitos em termos de experiências cotidianas deles, partindo do que eles sabem e vivem, segundo a lição de Paulo Freire. O professor é um tradutor e eu tentei traduzir existencial, metafísico e outras pedreiras na linguagem deles. Não sei se consegui. Mas tentei.
Como foi? Para mim foi um Guararavacã com direito a beijar Diadorim (metaforicamente, pessoal). A filosofia desta aula foi a seguinte:
A literatura é um brincar com palavras, que cria uma brincadeira, o livro, que pode ser brincado à sua maneira por quem quiser.
Mas é uma brincadeira cujas regras só são reveladas durante o brincar (isto é: a leitura).
Há autores que revelam logo as regras, até na epígrafe. Há outros que demoram mais e até as disfarçam, tornando a brincadeira mais difícil, mas, por vezes, mais prazerosa. (é o caso do Rosinha)
Mas, de um jeito ou de outro, todos os autores e autoras nos convidam a brincar com seu com seu artefato de palavras.
No caso de Grande sertão: veredas, Rosa embaralha (ou entrança, como diz Riobaldo) as peças, ou seja: as palavras e as histórias que elas formam. De uma tal maneira que só vamos entender as regras da brincadeira na segunda leitura.
Mas a cada leitura a brincadeira do GSV se torna mais divertida, mais prazerosa e mais significativa.
Foi a partir deste enfoque lúdico, contando primeiro a relação do menino Joãozito com as palavras que iniciei a aula.
Lemos poucos passos, mas bem ruminados, bem mastigados, método rosiano clássico.
Distribuí duas folhas de esclarecimento, uma falando dos três sertões (físico, existencial e transcendental) e outra explicando o título do livro.
Deixei vir meu menino de 12 anos: dramatizei a leitura, fiz caretas, brincadeiras, cantei, dancei, enfim me diverti feito vaqueiro que termina de embarcar o gado no trem e pede uma na venda de seu Florduardo.
Mas, com todo o respeito pela cachaça mineira, a minha droga é mais poderosa, mais alucinógena. Lembrando Manuel Bandeira, nessa tarde noite, o que eu tomava era alegria.
Se quiserem ouvir toda a aula, com direito às folhas que distribuí, enviem um email para marcosalvito@gmail.com
Se quiserem ver os dez primeiros minutos da aula, cliquem no vídeo abaixo.
P.S: Um agradecimento especial ao Judson Vieira Nunes, que filmou de forma competente e paciente toda a aula. Muito obrigado.