Diário do URUCUIA 014 – Crianças levadas, os perigos do Urucuia e as histórias de seu Cipriano
Dia grande. Sábado da primeira aula da turma dos professores. Depois de quarenta anos, nem o peixe nadando no rio Urucuia está mais à vontade do que eu diante de alunos e alunas. Me alimento dessa adrenalina pedagógica, porque futebol e sala de aula são uma caixinha de surpresas. Professores, é lógico, em sala são crianças levadas, voltam a ser alunos com muita facilidade: chegam atrasados, consultam o celular, voltam do recreio depois da hora e faltam à aula. Mas o nosso entrosamento foi imediato, rimos muito, brinquei à vontade com eles, mais do que na turma de alunos, onde preciso tratar os meninos e meninas com mais delicadeza. O conteúdo foi o mesmo, é claro, mas trabalhado de uma forma diferente, mais aprofundada e mais adulta. Os alunos-professores receberão mais materiais, pois o meu objetivo é que alguns deles sejam capazes de espalhar a palavra rosiana pelo sertão afora. Vocês podem conferir como foi o início da aula no vídeo abaixo.
Depois, tinha um almoço à beira do meu rio com meu amigo Nilsinho. As mãos de Dona Lucinha continuam divinas e o peixinho com salada, arroz e feijão de corda estava maravilhoso. A conversa é que foi um pouco indigesta: Nilsinho e amigos me comunicaram que no meu Urucuia agora tem piranha e que sempre teve jacaré. Nilsinho diz que choveu muito esse ano e as lagoas estão cheias, mas quando esvaziarem os jacarés voltarão para os rios. Todos tentaram me tranquilizar: “piranha não ataca assim, não”, “jacaré só se você esbarrar nele”, “e ele estiver com muita fome”, complementa outro. Acho que meus dias de mergulhar no Urucuia findaram. Não fiquei muito tempo depois de almoçar porque tinha outro compromisso inadiável: a conversa com seu Cipriano.
Lembram do triste fim do cavalinho branco chamado Rodolfo? Naquele dia, vi o dono dele, um senhor de idade chamado Cipriano. A expressão de vida vivida do rosto e o chapéu de vaqueiro me deram a impressão de ele tinha muita história para contar. Por duas ou três vezes, quando fui à Vereda da Mutuca, passei pela casa dele e chamei. Uma vez, ninguém apareceu. De outra, uma nora informou que ele estava pela cidade e só iria voltar mais tarde. Ontem, ele também não se encontrava, mas seu neto, Emerson (“nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecêia, o senhor sabe.”) me informou que ele estava na Folia de Reis. De início eu não entendi, pois Folia de Reis vai do dia 25 de dezembro até o Dia de Reis em 6 de janeiro. Depois eu iria entender. Mas aquela informação confirmou que seu Cipriano era uma pessoa com quem valia a pena conversar. Então, peguei o zap do neto e combinamos que eu iria encontrar seu Cipriano no dia seguinte, no início da tarde.
Terminada a primeira aula para os professores, passei no acampamento do Alvito para trocar de roupa, beber o café da Hermínia e pegar a Nikon. Deixei o burrinho na sombra e saí pedalando a Alba Valéria, em um instante estava lá no sítio dele. Seu Cipriano me esperava numa cadeira de espreguiçar colocada no alpendre. Só não era das de Carinhanha como a de Riobaldo. De bermuda, descalço, sem camisa, não parecia, mas era um rei em seus domínios, tranquilo, senhor de si, mas humilde, sem arrogância. Afinal, ele mora ali desde que se entende por gente. O pai era fazendeiro em São Francisco, mas quando sua mãe morreu ele tinha apenas quatro meses. Sua tia paterna e madrinha o “pegou para criar” e o trouxe para uma fazenda em Urucuia, mas logo ele já estava morando nesse mesmo sítio onde me recebeu. Isso foi por volta de 1947, nove anos antes da publicação de Grande sertão: veredas. Na verdade, à época esse povoado, com poucas casas, se chamava Porto de Manga, que o povo encurtava para Manga. Ainda hoje, ele só chama a cidade de Manga.
Se a lida no campo fosse um time de futebol, podemos dizer que seu Cipriano jogou em todas as posições, de goleiro a ponta-esquerda. Com oito, nove anos, já montava e ajudava a tocar boi. Está tão acostumado com cavalo que ainda hoje, diz ele: “Sou capaz de ir a Arinos [64km] sem sentir nada.”
Logo fazia o trabalho de campeiro: tirar o gado do curral pela manhã e depois recolhê-lo novamente antes da noite. Cuidar de bezerro doente, com bicheira, por exemplo. Separar vaca prenhe ou depois de parir, momento em que são perigosas. Tirava leite de vacas, que aos poucos iam amansando e se acostumando com ele, sempre carinhoso, cuidadoso. Sorri (tem um sorriso de menino maroto de quem parece que está piscando o olho) e diz que “era a melhor coisa do mundo”. Mas era também trabalho perigoso como se vê na novela “O burrinho pedrês” (a primeira de Sagarana). Ele admite que muitas vezes teve que dar “topada” com a vara, que pode ser dada ou na testa entre os olhos. E que às vezes era preciso mais de um vaqueiro para “convencer” o boi.
Naquela época, vinham peões até de Uberlândia buscar o gado magro do sertão para ser tocado, engordado e depois vendido ou abatido. O rebanho cruzava o vau do Urucuia nadando, com um canoeiro fazendo um papel de vaqueiro aquático para ordenar a movimentação da boiada. O pessoal de fora chegava na cidade e ia comprando os melhores bois de um e outro até juntar 400, 600 cabeças de gado. Às vezes até precisavam contratar alguém de Manga para ajudá-los a levar o gado até o seu destino e seu Cipriano de vez em quando também se ocupou disso.
Gostaram? Tem mais. Sempre teve roça, ajudado pelos filhos. Cultivavam feijão, arroz (tirava sacas e sacas) e milho (enchia vários carros de boi com essa produção). Diz que hoje não se pode mais ter roça, porque as chuvas estão sempre diminuindo, sobretudo de uns oito anos para cá. Antes tinha semanas em que chovia sem parar: “a gente não podia fazer nada, ficava só em casa comendo o que houvesse”. Mas, naquele tempo, criou os filhos com o produto da roça, trabalho do qual ele também gostava. Agora é cada vez menos água e mais gente. Antes criava porco, mas hoje as propriedades estão coladas umas às outras e porco dá muito problema: ele vai lá e devora o mandiocal do vizinho… Mas o seu quintal ainda está cheio de galinhas, percebo. Noto também uma meia-dúzia de gatos na sombra da varanda e fico com vontade de fotografar um a um. Na saída, não resisti, bem que tirei fotos de uns dois.
Fala que estudou oito anos, mas sempre daquele jeito: três meses um ano, quatro meses o outro. Por questões de trabalho e porque a escola mudava de lugar. Fico surpreso quando me diz que não havia jagunço nem capanga nessa região. Mas admite que havia disputas entre os fazendeiros em torno de questões de limites de terra.
Quando pergunto qual o trabalho de que mais gostava, ele não tem dúvida: ser carreiro, responsável pela condução do carro de boi. Conta que já levou carro com cinco, seis juntas de bois, ou seja: com até dez, doze animais. À frente, ia um menino, um guieiro, avisando por onde passar, alertando sobre obstáculos mais à frente. Nem todo guieiro era bom, “tinha uns que não valiam nada” (fala como se ainda estivesse chateado), mas outros eram bons mesmo. Uma vez por ano, em julho, ia de carro de boi com seu padrinho buscar sal, querosene e arame na cidade de São Francisco, do outro lado do Velho Chico e a oitenta quilômetros de distância. A viagem de ida e volta durava doze dias.
Fala dos violeiros, de seu Manelim, que tocava tão bem que vinha gente de longe, pagando, para ver ele pegar na viola. Lembra dos bailes, muitos, nos quais, como não havia polícia, todo mundo tratava de se garantir levando escondido uma faca, um revólver ou os dois. Mas acha que havia menos violência do que hoje. Apesar disso, em toda a conversa, sou sempre eu que lhe pergunto sobre os dias de hoje, ele não se importa muito com isso. Trabalhou duro a vida toda, agora parece estar no seu “range rede”. E como, ao contrário de Riobaldo, não tentou fazer pacto com o Diabo, vive a sua idade sem maiores sobressaltos.
Ainda participa ativamente da Folia de Reis. Explica que aquela folia fora de época foi a pedido de um sujeito que fez um voto e pediu para a folia abençoar o seu curral. O pagamento foi um bezerro para o chefe da folia. Na folia ele toca seu pandeiro e responde ao mestre. Como saber viver esse seu Cipriano.
Por falar em futebol, como se fosse uma prorrogação, aos 75 anos, eventualmente seu Cipriano ainda é chamado por um fazendeiro ou outro para ajudar nos trabalhos do campo. “Tem sujeito”, ele diz, “que não sabe nem quem é o bezerro”.
No final, digo a ele que sou professor, que vim dar aula em Urucuia e que estou fazendo um diário da viagem. Tento explicar a ele, que não tem celular, o que é o Facebook e digo que vou escrever o texto, enviar para o celular do neto dele, Emerson. O neto então leu o texto para seu Cipriano, para ele aprovar ou então sugerir mudanças. O texto que vocês estão lendo agora é o texto aprovado por seu Cipriano, que gostou e não solicitou nenhuma modificação.
Alba Valéria me levou voando baixo para o acampamento. Não gravei a conversa, achei que o gravador iria tirar a naturalidade de seu Cipriano, por isso tinha que chegar logo para registrar tudo de memória no computador. Acho que deu certo, dada a aprovação do meu entrevistado.
Depois disso o meu último e muito esperado compromisso era jantar, o que fiz no ótimo Brasa Burguer, de Rogério e Núbia. Tendo adotado meu modus operandi carioca, falando e brincando com todo mundo, já sei o nome de muita gente: aqui no hotel o dono é Betim, o filho se chama Junior, o neto tem o mesmo nome do meu filho: Heitor. A dona do comida a peso é a Cláudia. Não sei o nome mas conheço as moças que atendem às mesas e as cozinheiras também. Vanderlei e Dona Lucinha já foram mencionados. Ainda no hotel Plaza, temos Gilciane que faz o café da manhã e Davies a quem eu só chamo de “Açucarado” pela quantidade dessa substância que ele põe no café. Já sei o nome de todos os meus alunos-estudantes e de um bom número dos professores. Há o Junior, da Junior bikes, mas esse é fácil. E, é lógico, tenho minhas auxiliares: a bicicleta Alba Valéria, a cafeteira Hermínia e o meu glorioso e inigualável burrinho pedrês. Nem conto os que já conheci desde 2019 como Leninha e seu filho Victor e as professoras Célia, Márcia Cristina, Francisca e Marlei. Sem falar na vereda que agora conversa comigo…
Bem, antes do ponto final tenho que contar mais uma coisa. Depois da janta eu e Alba Valéria demos uma passeada pela larga avenida de Urucuia, até o fim da urbe e de volta. Neste retorno, vi uma dúzia de vacas e bois andando na rua, civilizadamente pelo lado direito da faixa (sim, tem foto, nos comentários). Primeiro pensei que devia ser um bando de bovinos fugitivos que teriam escapado do curral. Que nada! Mais à frente vi que o grupo todo se dirigia a um terreno baldio cheio de capim alto. Tinham ido fazer um lanchinho. Se vão voltar direitinho para casa, isso eu já não sei.
Desde quando eu sou fiscal de vaca?
Pois é, esse foi meu sábado “calmoso” aqui no Urucuia. Amanhã tem mais.
P.S: Já ia me esquecendo. Além das vaquinhas esfomeadas, vi também vários cavalos amarrados nas árvores do canteiro da avenida principal. É o pessoal que trabalha nas fazendas em torno que no sábado à noite vem tomar sua pinga e sua cerveja na cidade.