Diário do Urucuia 022 (domingo, 15-05-2022) – O diabo na rua, no meio… , nem só de bola vive o homem, o trio que virou quarteto e Faixa bônus: Entrevista com a grande dama de Urucuia – Parte 1
Três semanas na estrada. Isso não é nada: Riobaldo e Diadorim devem ter zanzado quase uns dois anos para cima e para baixo sertão afora, fugindo dos soldados do governo e indo atrás do felão do Hermógenes. Quando não encontravam abrigo em uma fazenda ou sitiozinho de aliado, dormiam debaixo de árvores, às vezes na rede. Mas sempre com elas armadas perto o suficiente para sentirem o cheiro um do outro. Grande sertão: veredas é um road book. Passei três anos imaginando essa viagem e agora que acontece estou em um sonho suspenso no ar, vendo ele tomar forma e sumir um pouco a cada dia: “Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão.”
Ontem saí da festa maína da APAE em hora rosiana canônica: 21:37. Apesar disso, fui dormir tarde porque ainda fiquei fazendo o diário tentando colocar o calor do vivido no papel. Hoje, domingão, acordei tarde, quase sete da manhã, quando o meu normal é lá pelas cinco, às vezes antes, sabe como é #marcosalvitotávelho2022. Comi uns biscoitinhos com o poderoso café da Hermínia e parti para o pastel de feira com suco de maracujá. A alegria maior foi encontrar meu ídolo urucuiano, seu Vanderlei, também comendo seu pastelinho. Avisei a seu Catarino que a despesa do baixinho era minha. Seu Vanderlei bateu na bola de primeira, ainda no alto: — Se eu soubesse tinha comido mais… Disse que o fizesse, mas ele tinha que correr para o bar, porque tinha arrebentado o cano d’água e ele iria providenciar uma gambiarra.
A música que estava tocando hoje era sertaneja raiz. Descubro quem é o DJ, o sujeito mais simpático do mundo chamado Maurinho. Gosto dessa gente que dá bom dia com gosto, sem arrependimento. Tem pessoas que dá vontade de você perguntar: — Moço, moça, quanto custa para o senhor, para a senhora, me dar um bom dia condizente? Maurinho e eu combinamos que depois ele vai aprontar para mim um pendrive com todos esses clássicos: Tonico e Tinoco, Teixeira e Teixeirinha e outros. Não vou tocar para o burrinho, senão ele empaca, mas vou ouvir com calma para fazer uma análise pseudo-antropológica.
Depois daquele bom augúrio, dou uma caminhada por João Guimarães Rosa, a avenida, com todo o respeito, mestre. Pena que estava desarmado da minha Nikon, vi dois casais de pássaros: tucanos e pica-paus. Tucano eu vejo em frente a minha janela em Santa Teresa com certa frequência. Mas pica-pau é novidade. Fotografar pássaro com o celular é um beco sem saída: se fotografa de longe, nada sai, caso você se aproxime eles saem voando. Consegui flagrar um tucano em pleno vôo, dá para ver direitinho na foto.
Nesse domingo eu estava querendo ver um jogo de futebol de várzea. Aliás, eu juro que nestas três semanas eu já rodei 1.800 quilômetros e não vi um só joguinho de bola com uniforme. País do futebol uma ova. Pelo zap entro em contato com meu consultor para assuntos urucuianos em geral, o doce Nilsinho. Ele diz que vai fazer suas consultas e retorna avisando que não tem jogo nenhum em Urucuia hoje. Existe um campeonato da micro-região, uma disputa renhida entre Urucuia, Riachinho e mais dois municípios. A coisa é tão disputada que até contratam jogadores profissionais para reforçar os times, muitas vezes com verba da prefeitura, porque os prefeitos sabem que futebol dá voto. Se o time for campeão, é claro.
Sem ter o que fazer, jogo uma água no burrinho, sob protestos do mesmo. Vou ao supermercado comprar sabonete, pasta de dente, coisas assim. Encontro Nilsinho e a filha do Vanderlei, Jussara. O bom de cidade pequena é isso. Tenho amigos que moram no Rio que não vejo há meses e até há anos.
Tenho uma belíssima entrevista para ouvir e fazer um diário especial, mas a preguiça hoje é ampla, geral e irrestrita. Riobaldo me entende:
“Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as fôices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei — mas meu coração pensava.”
No meu caso eu precisava de um teclado que batucasse sozinho o texto depois de ouvir novamente a entrevista com suas orelhas eletrônicas. Sei o remédio para essa indolência, meu trio de ouro: almoço-soneca&café. Na verdade é um quarteto, porque não dispenso o chicabom de sobremesa. Aliás, quando eu estava saboreando o dito cujo o Cujo me apareceu com um redemunho de vento levantando poeira bem no posto de gasolina. Fiquei arrepiado até o último pelinho da alma. Talvez seja o Rosinha usando o Diá para me lembrar das minhas responsabilidades em fazer esse diário direitinho.
O fato é que até agora este diário está uma vergonha quase pior do que seria condenar Zé Bebelo à morte:
— “Vergonha! Raios diabos que vergonha é! Estrumes! A vergonha danada, raios danados que seja!…” — assim; e quem gritou, isto a mais, foi Sô Candelário.
Bom, então esperem um pouco que eu volto depois da soneca e do café, pode ser?
Voltei revigorado, vejam se gostam da matéria sobre a entrevista que fiz no sábado, no bar de seu Vanderlei, em frente ao Urucuia:
Faixa bônus:
Entrevista com a Grande Dama de Urucuia: Maria Madalena Chaves dos Anjos, conhecida em todas as margens do rio como Leninha
Leninha é dessas pessoas que carregam a biografia no olhar. São olhos que vêem o mundo com equilíbrio, sabedoria e sempre um bocado de compaixão. Se Urucuia fosse um reino independente, ela daria uma boa rainha. Cuidaria do seu povo feito leoa amorosa, coibindo os excessos sem nunca dispensar a compreensão. Linhagem ela tem, é de nobre família urucuiana. Seu bisavô paterno veio da Bahia com cinco irmãos à época em não havia mais do que uma vilinha com algumas casas à beira de um rio. Aqui se casaram e viveram suas vidas. O irmão de seu avô foi um grande fazendeiro, que chegou a comprar o título de coronel da Guarda Nacional. O coronel Antonio não sossegou enquanto não viu a escolinha de pau-a-pique onde os estudantes se sentavam em tocos de madeira ser tranformada em uma escola como se deve, construída em 1969. Foi nessa escola que Leninha fez até a quarta série. Ali sua tia foi a primeira diretora e seguiu no cargo por trinta anos. Leninha, depois de completar seus estudos, até a pós-graduação, trabalharia como professora e seria diretora da E.E. Antonio Esteves dos Anjos por doze anos. A escola, que hoje funciona em outro prédio, erguido em 1987, leva o nome do tio-avô fazendeiro e amigo da educação. Leninha ainda está lá hoje, agora cuidando da biblioteca onde estão disponíveis os exemplares de Grande sertão: veredas que foram generosamente doados por várias pessoas. Quando a atual diretora tem um grande problema a resolver, do tipo um professor carioca que quer vir dar aula aqui, Leninha é convocada para descascar o abacaxi. Acaba sendo uma consultora permanente da direção.
Não se pense que teve vida fácil. Quando sua mãe, Maria Luiza estava grávida dela, seu pai biológico, que era originário da Serra das Araras, tirou a própria vida. Acontece que ali na localidade outro rapaz sempre fora apaixonado por Maria Luiza e depois da tragédia pede para namorá-la. De início ela se nega, mas acabam se casando.
Ela nasce em 29 de maio de 196…, plenamente rosiana, pelas mãos de Mãe Joaninha, parteira que era “mãe de todos nós urucuianos, antes, só existia ela para fazer os partos.” Todos os irmãos de Leninha e todos os moradores antigos vieram ao mundo acolhidos por essa senhora, que Leninha diz ser “uma mulher incrível, de sabedoria muito grande, já falava se a criança estava sentada, tudo conhecia.” Minha entrevistada se alegra pelo fato de que hoje o hospital da cidade leva o nome de Mãe Joaninha, uma bela homenagem.
Nessa época havia uma tradição de uma clareza tão grande que dispensa o comentário antropológico: se nascia menina, o foguete era soltado da porta da cozinha. Se vinha um menino, da porta da rua. Quando ela nasceu, Mãe Joaninha avisou: “— Solta o foguete na porta da cozinha que a menina chegou”. Ela mesma contou isso a Leninha.
Sua infância foi ribeirinha e maravilhosa. Não havia luz elétrica, nem água encanada ou esgoto sanitário. Tinham que buscar água no Urucuia para beber, banhar e cozinhar. As crianças da vila viviam sempre juntas brincando de roda, indo ver o gado atravessar o rio nadando, indo torcer nos jogos de futebol. Havia uma praia do rio que eles chamavam de Porto do Barroso, onde se encontravam e jogavam vôlei. À noite combinavam brincadeiras, era uma vida feliz.
Leninha cresce acreditando que seu pai era Raul Cardoso da Mata, conhecido por Raulin, um homem que chegou a ser uma espécie de prefeito da vila de Porto de Manga. Seu pai adotivo valorizava a educação e Leninha vai para São Francisco, onde teve que morar longe da família para fazer a quinta-série. Aos doze anos, morava com outras meninas da mesma idade em uma cidade que era muito grande e diferente para ela. E São Francisco ficava a mais de 100 quilômetros de estrada de terra de distância de casa, sem falar a travessia do Velho Chico de balsa.
Também nessa época, teve que enfrentar algo muito duro: uma vizinha (haja maldade, mas esse comentário é meu, Leninha desconhece rancor) conta a ela que Raulin não era seu pai biológico e diz o que acontecera com o mesmo. Ela sentiu o golpe: “não queria ter outro pai”, mas vai atrás da sua história, conhece a família de Serra das Araras e passa a gostar deles também. Coração nunca lhe faltou.
Sublinha que sempre gostou muito de estudar. Nas minhas aulas ela não pisca o olho, presta uma atenção intensa e fala quase cantando que ama Guimarães Rosa. O pai adotivo a quem vou fazer justiça chamando simplesmente de pai, dava todo o apoio. Como São Francisco era muito longe, para que ela e os irmãos fizessem da 6a à 8a. série, alugou uma casa em Arinos para eles. Mas ela trabalhava também, além de estudar, “cuidando de uma criança”. Se forma no que então era o Primeiro Grau. Neste momento já estava até adaptada a Arinos, havia feito amizades e nem queria sair de lá. Só que lá não havia o Segundo Grau.
Ela queria continuar a estudar e tem que se mudar novamente para São Francisco. Lá também estuda e trabalha: vendendo roupa em loja, de doméstica, babá e de secretária, na Prefeitura. Arruma um namoradinho e quando conclui o que hoje é o Ensino Médio, o pai lhe pergunta: “— E aí, o que você quer fazer? Quer continuar a estudar, quer casar?”. Ela ri, me dizendo que primeiro pensava em casar, mas depois mudou de ideia, o rumo dela era o estudo.
E lá foi Maria Madalena Chaves dos Anjos para Passos, sul de Minas, onde se graduou em Pedagogia, depois fez pós-graduação e começou a trabalhar. “A minha vida estava feita lá”, ela pensava: “é por aqui que eu vou ficar.” Foi ali que teve sua primeira experiência em sala de aula, ensinando Artes. Também trabalhou no jornal da cidade. Quando passou a ser diário, contrataram alunos e alunas da faculdade a partir das notas e Leninha estava entre as primeiras.
Mas quem bebe, se banha e cozinha com a água do rio Urucuia… O pai pede para ela voltar: ele queria que houvesse o Segundo Grau em Porto de Manga mas para isso era preciso haver ao menos uma pedagoga. “Vem para criar o Segundo Grau e depois você vai embora”. O pai a convence: para que as crianças e suas famílias não tenham que sair como nós fizemos. Alguns, aliás, nem teriam condição fazer isso.
Adivinhem se ela atendeu ao chamado? Chegou no final de 1987 e passou dois anos como vice-diretora e dando aulas de Matemática — no sacrifício, pois nunca estudou isso. Estudiosa e dedicada, aprende a gostar de matemática na sala de aula e chega até a pensar em fazer faculdade da disciplina.
Assumiu o cargo de diretora da escola em 1989 e permaneceu até 2000. De todas as formas possíveis, a história da educação em Urucuia se confunde com a vida dela.
AQUI TERMINA A PRIMEIRA PARTE DA ENTREVISTA. Amanhã a segunda parte (serão três partes)