/Diário do Urucuia 023 – Apertando o botão errado, os enviados do Carocho, o bem que faz um pneu furado e Faixa bônus: SEGUNDA PARTE da entrevista com a Grande dama de Urucuia

Diário do Urucuia 023 – Apertando o botão errado, os enviados do Carocho, o bem que faz um pneu furado e Faixa bônus: SEGUNDA PARTE da entrevista com a Grande dama de Urucuia

Diário do Urucuia 023 – Apertando o botão errado, os enviados do Carocho, o bem que faz um pneu furado e Faixa bônus: SEGUNDA PARTE da entrevista com a Grande dama de Urucuia

Pelo jeito, Urucuia inteira sabe que tem um carioca apaixonado pela terra passando uns tempos por aqui. Só isso mesmo para explicar a mensagem de zap que recebi da dona de outro hotel da cidade na noite anterior. Ela me ofereceu um lote de terra “na avenida principal”. Agradeci, mas expliquei que moro longe e tenho família no Rio de Janeiro.

Mas se fosse na beira do rio…

Acordo de madrugada ao som surpreendente de uma chuva de pingo grosso. Dormi de novo com aquela trilha sonora de sonho e quando acordei a chuvarada continuava. O sol só colocou as botas no dia lá pelas sete da manhã.

Chuva de maio em Urucuia é um evento raro, tanto que o Climatempo, totalmente errado, dizia que

hoje vai ser que nem ontem, sem chover… O sertão é traiçoeiro até em termos metereológicos. O cabra que faz o norte mineiro deve estar acostumado a apertar o botão “Dia de sol sem nuvens”. Dessa vez o cavalinho dele caiu do barranco, velho provérbio mineiro que acabo de inventar.

Decidi fazer uma travessia pequena até Arinos, cinquenta e dois quilômetros de bom asfalto sem movimento quase nenhum. O motivo revelarei depois, em outro diário, é bom a gente fazer um bocadinho de suspense para deixar esse povim do Foicebúqui aceso, intrigado.

Mas conto o que vi no caminho, fui parando para fotografar os ribeirões. Que linda foto deu o Ribeirão da Areia, que separa os municípios de Urucuia e Arinos e tem breve mas honrosa menção em Grande sertão: veredas:

Dei ordem. torcemos caminho, numa poeira danã. A reto, viemos beirando o Ribeirão da Areia, de rota abatida. O que era que eu tencionava fazer? O senhor espere.”

Infelizmente, não vi só belezas. Uns vinte quilômetros antes de Arinos, amarrei o burrinho e fui fotografar o fim do mundo. Ou pelo menos o fim do Cerrado. Por quilômetros, dos dois lados da estrada, se estendia uma vasta plantação da árvore com encosto, endominhada, tão nefasta, peçonhenta e maligna que nem vou dizer o nome. Ao longe, divisei um lindo buritizal começando a morrer por conta da vizinhança dos paus do Mafarro, desses enviados do Carocho que parece que bebem a água toda de canudinho não deixando nada pra ninguém.

Parte da propriedade estava com a terra toda preparada, ou seja: arrasada, totalmente limpa de vestígios da vida do Cerrado para que nela fosse plantada a morte. Ao longe, um homem pilotava um trator amarelo e um pivô gigantesco sugava água do ribeirão mais próximo para regar as sementes d’O-Que-Nunca-Se-Ri. Porque depois disso não dá para rir mesmo.

Vi até uma guarita de três metros de altura, verdadeira obscenidade arquitetônica no meio do sertão. Decerto essa torre não foi feita para observar passarinhos. Só falta o ninho de metralhadoras. Já deve ter sido encomendado.

Retornando de Arinos, por favor não insistam que só vou contar em outro diário o que lá tratei hoje. Almocei no melhor comida a peso da região, tão bom que abusei da quantidade e mesmo sentindo a pança cheia tomei o tradicional chicabom que ninguém é de ferro. Mas, digestão por fazer, voltando pela estrada ao sol de meio dia, o pneu do burrinho estoura fazendo drama e barulho. Procuro o inexistente acostamento e me lembro das três etapas para se trocar pneu:

1. Não fique irritado, é que nem adicionar juros e correção monetária a uma dívida já pesada;

2. Lembre do ensinamento budista (sou apenas flamenguista, mas ouvi falar e tô repetindo que nem papagaio): tudo tem o seu lado bom; depois eu conto, tenham calma;

3. Mantenha o bom-humor;

Se fizerem isso e souberem posicionar bem o macaco, prometo que irão trocar o pneumático no “prazo de capar um gato”. O que teve de bom? Mesmo no sol do meio-dia, aquele exercício ajudou a minha digestão, embora tenha sido “à porrete”. Humor? Raciocinei: ano passado furou meu pneu traseiro direito em Mato Grosso do Sul à uma da tarde. Agora o dianteiro esquerdo no sertão de Minas. É a tal da polarização: a direita retrógrada versus a esquerda avançada. Tá certo, não é muito engraçado, mas é melhor do que ficar pensando: “— Por que o raio do pneu furou bem agora que estou doido para tirar uma soneca.” Ainda por cima, ao meio-dia você não pode reclamar de falta de iluminação.

O único jeito de salvar este diário é ir logo para a …

Faixa bônus: SEGUNDA parte da entrevista com Leninha (Maria Madalena Chaves dos Anjos)

Leninha se interessa por tudo que diz respeito a Urucuia. Tem documentos, vídeos, entrevistas e fotos sobre a história da cidade e sua cultura. Leu obras que explicassem a formação do “aglomerado” que depois virou vila, distrito e finalmente cidade em 1992. Conversou e gravou depoimentos dos moradores mais antigos.

Segundo ela, aqui houve a utilização da mão de obra de homens e mulheres escravizados e a prova disso estaria em uma casa na Mutuca (local da vereda) que teria sido construída por eles. Há inclusive uma comunidade quilombola na Baixa Funda. Pelo fenótipo dos urucuianos de hoje se percebe uma forte presença negra.

O primeiro “aglomerado”, como ela chama, surgiu de pessoas vindas da Bahia e também de outros que moravam em fazendas da região e preferiram se juntar ao incipiente núcleo de povoamento. As terras da vila foram doadas por Policarpo Ramos e Flonória Ramos, decerto interessados no desenvolvimento da região.

De início, a sede do distrito era na “Fazenda Alegre”, onde já havia uma capela e um pequeno conjunto de casas. Mas, devido à dificuldade de acesso e ao excesso de chuva no local, a sede do distrito foi transferida para “Porto de Manga”. O casal Ramos novamente entrou em ação, construindo uma Igrejinha na beira do rio Urucuia, que dedicaram a Santa Nossa Senhora da Conceição com uma coroa de ouro trazida da Bahia.

A povoação ficava às margens de um porto fluvial muito simples, feito o porto do De-Janeiro descrito em Grande sertão: veredas:

Porto, como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito.”

Nessa época não havia escola alguma, só um senhor, seu Ascênsio, que ensinava a ler e escrever na casa das pessoas. Hoje existem até faculdades de Ensino à Distância baseadas em Urucuia.

Como havia muitas mangueiras, o local de início era chamado de Porto das Mangueiras e depois, para abreviar e simplificar, Porto de Manga. Ali morava a D. Joana Porto que tratava todos com carinho e emprestava a canoa para os viajantes atravessarem. Como a padroeira era Nossa Senhora da Conceição, a festa deveria ser no dia 8 de dezembro. Nesta época, todavia, chovia tanto nesse mês que passaram a festa para setembro. O padre só vinha uma vez por ano, exatamente nessa ocasião, em dezembro ele não conseguiria percorrer as estradas de terra transformadas em lama.

Hoje a festa religiosa passou a ser em dezembro, com missa. Mas a festa maior, da padroeira, por tradição, continua a ser realizada em setembro. Leninha ensina que é a grande festa de Urucuia, quando todos os urucuianos dispersos pelo Brasil voltam para casa, os parentes se reencontram, todos se vêem. Além disso comparecem pessoas de outros lugares para uma festança que dura três dias, tem um mar de barraquinhas e muitas atrações musicais. Leninha adora essa festa, que por conta da pandemia não se realiza há dois anos. Espera com alegria para “quando entrar setembro” (Beto Guedes).

Há outras festas importantes: o aniversário da transformação de Urucuia em cidade (1992) é comemorado em 27 de abril. As festas juninas são uma tradição muito forte, como em tantos lugares do interior do Brasil. Sendo que a maior festa junina de Urucuia é em 12 de junho, organizada pela Igreja de Santo Antônio.

Muito interessante, também, é a “Festa dos Carreiros” no distrito de Bonito, que ocorre no mês de julho. É uma festa grande, com desfile de carros-de-boi enfeitados, vem gente de longe ver e também ouvir os shows musicais. Meninos em carros puxados por bodes são os “carreirinhos” que também despertam muita simpatia.

Outro setor bastante forte em Urucuia é o artesanato. Muita coisa sempre foi feita com a palha de buriti: esteira, peneira, vaso de buriti. Hoje, Dona Vanderlucia faz lindas caixinhas de palha de buriti, exclusividade urucuiana, não se encontra esse tipo de trabalho em nenhum outro lugar de Minas ou do mundo. Antes havia também os tradicionais bordados com bilros.

E é claro que Urucuia é berço de violeiros exímios, o maior deles o famoso seu Manelim, para sempre eternizado por seu grande discípulo Paulo Freire (tem um site muito bacana). Leninha diz que sempre apoiou essa manifestação, levava seu Manelim nas escolas, onde ele tocava e contava histórias, era um dos grandes contadores da região. Ela tem várias gravações dessas apresentações. Tentava valorizar o que ela percebia ser uma riqueza ignorada pela maioria dos urucuianos e pelas autoridades descompetentes (sou eu que as chamo assim).

Leninha gostaria de fazer um livro a cultura urucuiana em todas as suas vertentes.

O que sei é que se fizessem um livro sobre Leninha decerto abarcaria tudo que há em Urucuia e mais.

AMANHÃ A TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE da entrevista com a Grande dama de Urucuia

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Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

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Estudantes, professores e moradores de Urucuia e do sertão mineiro receberão bolsa de 50%

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