Diário do Urucuia 024 – A patinha do burrinho, remanso do Urucuia, o último refúgio; Faixa bônus: terceira e última parte da entrevista com a grande dama de Urucuia
Acordei só pensando naquilo: consertar a patinha do burrinho. É incrível que nesta cidade com tantos carros circulando, sobretudo os Só Um Viverei (SUV), não haja uma só loja de pneus. Acabei comprando um pneu novo em uma maravilhosa loja de produtos agropecuários. Carioca e urbanóide, fiquei deslumbrado com sementes variadas, adubos específicos para orquídeas ou samambaias ou bonsai ou palmeiras e coqueiros, o que deve incluir a árvore sagrada dos rosianos, o burití. Havia também bonitas selas de couro, ferramentas agrícolas, botas para todos os gostos e sementes que davam para plantar uma horta digna dos jardins suspensos da Babilônia que não têm nada a ver com isso e coloquei aqui só porque gosto da sonoridade. Resolvido o problema da patinha, coloquei o burrinho, mesmo a contragosto dele, para ser lavado e escovado no posto de gasolina. Amanhã temos programa especial (depois eu conto) e quero vê-lo na melhor forma. Afinal, esse Fordiká-2016-Burrinho pedrês é o meu primeiro carro, antes só tive dois Fiats-147.
Graças a uma dica da Cabelinho de fogo, moça que trabalha no Brasa Burguer, fiquei sabendo de outro ponto de acesso ao rio. Localizado, na verdade, na mesma estradinha de terra que já havia nos levado ao Guararavacã urucuiano. Só que, ao invés de dobrar à direita, eu tinha apenas que seguir em frente. A pista estava um pouco enlameada da chuva recente mas dava para pedalar quase todo o tempo. Não demorou muito tempo para chegar lá.
Ao final eu me vi numa espécie de rua sem saída, fechada por duas propriedades. Do meu lado direito, o Rancho Tio Zé ostentava uma placa circular pouco acolhedora: NÃO ENTRE – PROIBIDO CAÇA E PESCA. Do lado esquerdo, uma cerca de arame liso presa no pau da cerca parecia menos hostil, mas no interior havia dois carros de Brasília, um deles enorme, bruto, mais parecido com um tanque preto com cara de poucos amigos. Nem deu tempo de pensar em pit-bulls, dragões e unicórnios mal humorados. Dava para ouvir e sentir o rio a poucos metros, embora não fosse possível vê-lo. Aflição da beleza próxima e inatingível.
Acho que vi muito filme americano com aquelas placas de “Não ultrapasse” em que o cara pula a cerca e toma um tiro no peito com uma escopeta de cano duplo. O fato é que fiquei paralisado. Felizmente passava por ali seu Dino, um senhor tranquilo que me garantiu que eu podia levantar o arame, entrar no sítio da esquerda, sempre a melhor direção a se tomar (piada mais gasta do que pneu careca).
O fato é que tomado de súbita coragem, lá fui eu, adentrando o sítio desconhecido. A trilha para o rio, enlameada e íngreme, me lembrou Riobaldo: “De descer o barranco, me dava receio.” Desci aos trancos me segurando em árvores e galhos, já que não tinha Diadorim para me dar a mão. Valeu o sacrifício. Quatro canoas de metal boiavam na água, amarradas ao tronco de uma árvore com correntes de ferro, que também foram usadas por mim na descida e na subida. Duas tinham motor, as restantes, remos.
Sentei em uma delas — carioca é assim, logo abusa, e me pus a respirar sem pressa. Estava em um daqueles “largos remansos do Urucúia”. De um lado e de outro, duas curvas do rio. Em frente, um bom pedaço de mata cerrada. Ali os pássaros cantavam sem medo de homem. Até gravei um clipe de paz para vocês verem o que é bom, no sentido literal da expressão. Mais um local paradisíaco em que a Alvitur leva vocês, seus fariseus. Fiquei um tempinho ali acalmando meu coração. Dois passarinhos muito bonitos, alaranjados, passaram brincando de sobrevoar as águas. Tirei uma foto um pouco tremida mas deu para capturar os bichos. Ainda não identifiquei a espécie, sou um observador de pássaros de meia-tigela. Um que eu sempre vejo é o belíssimo corrupião, mas o bicho muda mais de posição do que o presidente da Petrobrás.
Alma pacificada, pedalei de retorno. Acabei por descobrir onde é o cemitério de Urucuia, que não tem uma só plaquinha de identificação. Fica, simbolicamente, fora da cidade, já na estrada de terra, o que aliás não é incomum. Diferente, segundo Manuelzão, é a vilinha de Andrequicé, onde segundo ele tudo está invertido (é exatamente assim): o cemitério na entrada da cidade, a igreja no fundo, de costas para o povoado.
Acho que já enrolei vocês o suficiente para entregar o que interessa:
Faixa bônus: TERCEIRA (e última parte) da entrevista com Leninha (Maria Madalena Chaves dos Anjos)
Dos mais de dez anos como diretora da única (até hoje) escola de Ensino Médio de Urucuia, Leninha tem boas recordações. Diz que era dura, os alunos a chamavam de “sargentona”. Percebendo o respeito que a sua presença inspirava, se valia de um artifício que jamais foi descoberto pelos estudantes. Comprou duas bolsas iguais, deixando uma no armário da escola. Mas se tinha que se ausentar para resolver algum problema, deixava uma das bolsas bem à mostra, sobre a mesa. Os garotos passavam por ali, viam a bolsa e achavam que ela estava na escola.
Hoje em dia, seus ex-alunos encontram com ela e agradecem pelas lições de assiduidade, respeito e disciplina: — Tia Leninha, quanto tempo bom, muitos dizem a reencontrá-la. — Eu só queria transmitir isso a eles, achava importante, diz ela.Quando havia algum problema ela mandava bilhetes para os responsáveis, chamava os pais na escola, fazia de tudo para colocar o aluno ou aluna nos trilhos. Eu estava esperando por ela para almoçarmos e fazer a entrevista. Assim que chegou, Jussara, filha de seu Vanderlei, deu um forte abraço em “Tia Leninha”. Boa parte da cidade deve chamá-la assim e a resposta massiva às duas partes anteriores da entrevista mostra o quanto ela é querida.
Não foi fácil criar o que então era o Segundo Grau em Urucuia. Ela lembra que teve que trazer praticamente todo mundo de fora. Teve até que hospedar professor na casa dela. As dificuldades eram muitas: o governador enviava poucos recursos, a merenda tinha que ser buscada em São Francisco, onde todo e qualquer problema era resolvido. Eram necessários três dias para ir, assistir a uma reunião ou resolver um problema, e voltar.
Felizmente, a escola sempre contou com a ajuda da comunidade e também do apoio frequente dos fazendeiros da região. Ela recebeu computadores que teriam que ser devolvidos se não fosse construída uma sala de informática, o que foi feito com a ajuda das pessoas da cidade e dos proprietários de terras. Nessa época, ao contrário do que ocorre hoje, as escolas podiam fazer festas no seu interior, hoje somente se forem do lado de fora. Essas festas eram outra forma de angariar recursos.
Acha que hoje a escola enfrenta pesados desafios, sobretudo por conta da mudança da atitude de pais e alunos. Muitos alunos não demonstram interesse em aprender, olhos fixos no celular, sem nem mesmo atender aos pedidos dos professores. Há alunos que saem de sala, gritam com o professor e até casos em que chamam o docente para a briga.
Há uso de drogas perto da escola e inclusive dentro, nos banheiros. Leninha diz que conversa com diretoras e professoras de outros municípios e a situação é igual. As famílias, por sua vez, parece que depositam os filhos na escola e se eximem de participar da educação dos mesmos, não estabelecem um vínculo cooperativo com a escola.
Leninha diz que o problema do desemprego é muito grande, não há fábricas nem outros estabelecimentos nos quais eles possam trabalhar. A cidade também não fornece formas de lazer e cultura para os jovens.
Peço então que ela faça um balanço dos pontos positivos e negativos da evolução da cidade Urucuia até agora. Começando pelos negativos, ela diz que o enorme potencial turístico da cidade está por explorar: não há placas indicando o rio e outros sítios, não se faz um bonito cais para aproveitar a linda vista do Urucuia.
Em termos ambientais, houve forte desmatamento da mata ciliar de rios e córregos, levando à erosão e ao assoreamento. Como exemplo, cita a Vereda Ôca, perto da sua “roça” que praticamente secou. Várias outras veredas estão nesta situação. O próprio rio Urucuia tem muito menos água do que já teve.
A este respeito, ela aponta que muitas pessoas vêm de fora, compram terras, transformam em grandes fazendas que captam dia e noite enormes quantidades de água para os pivôs de irrigação, vários deles, sem nenhum controle. Ela acha que isso deveria ser controlado, verificado, “ver quem tem outorga, se está certo”. “Nada, vão comprando as terras, vão montando os pivôs e pronto.” Eles vem de lugares onde as terras são muito caras: São Paulo, Brasília, Bahia, muitos do sul de Minas também. Descobriram que aqui no Urucuia dá para plantar café, soja também dá certo, tem muito. “Eles vêm, terras baratas, água à vontade… por enquanto… é gado, é muita carvoaria, que devasta demais a natureza, os animais adoecem.”
Pergunto a ela quem manda nisso tudo. Ela responde que é o prefeito. Pergunto quem manda no prefeito. “Ele não faz o que deve fazer, não protege o meio ambiente, mas tem os protegidos dele”. “Sonho com um futuro em que entre alguém aí que tenha outros olhos, realmente ame Urucuia e faça algo de melhor”.
Outra queixa de Lenina é acerca da divisão da cidade em duas: a parte baixa, junto ao rio, a parte antiga, a velha Porto de Manga, e a parte alta, a cidade nova, que surgiu sobretudo por volta de 1992, à época da emancipação. Ela reclama que “Porto de Manga” está abandonado, sem comércio, sem atenção das autoridades.
Como pontos positivos, ela cita a existência de um hospital onde até já se fazem cirurgias e de vários Postos de Saúde da Família. Apesar dos problemas, hoje há várias escolas municipais em Urucuia, lá vão longe os tempos da casinha de pau-a-pique, situação que existia há apenas 60 anos.
Incansável, Leninha não só toma conta da biblioteca da escola e de resolver questões variadas em auxílio da diretora. No intervalo de uma das minhas aulas, a flagrei cuidando de um canteiro de plantas. Perguntada, ela riu: “— O governador não manda verba para jardineiro a gente mesmo é que tem que cuidar.”
Complementa, os olhos tomados de bondade com propósito: “— Eu gosto, me dá prazer.”