Diário do Urucuia 025 – O retorno de Diadorim, a luta de Sagarana e a neblina da Jibóia
Acabei deixando escapar do diário de ontem algumas coisas importantes, dedicado que estava a compor a terceira parte da história de Leninha. A coisa mais bizarra: ao chegar de carro, vi que o “imenso” estacionamento para três carros e meio estava tomado por algo parecido com uma plataforma de perfuração de petróleo. Ao chegar no famoso quarto 219, o barulho parecia o de uma minhoca gigante a escarafunchar a terra. É que o proprietário deste estabelecimento hoteleiro, decidido a não pagar mais contas de água, resolveu furar um poço artesiano com este fim. Como ainda sobraram uns dois metros quadrados de estacionamento, vou sugerir a ele que lá coloque uma vaca leiteira, assim também não vai precisar pagar leite e quem sabe o queijo também.
O lado bom e inesperado dessa cena dantesca: Diadorim apareceu. É que o pai dele trabalha no soerguimento de mais um estabelecimento comercial, a já mencionada pastelaria. Claro que ontem foi deslocado para o sítio da somítica escavação. Diadorim, vocês lembram, já havia manifestado o desejo de ser engenheiro. Sem dúvida compareceu ao local para vivenciar um empreendimento de grande porte.
O fato é que ele me chamou com simpatia. Disse que não foi mais à aula porque Riobaldo não quis… Pulando o dia inteiro que logo será relatado abaixo, ao voltar para casa falei com o pai dele, que ficou meio suspeitoso durante 37 segundos mas depois conversou muito bem comigo. Elogiou o filho e seus dotes para trabalhador. Aproveitei para contar — o que o pai ignorava, que o menino gostaria de ser engenheiro e também para enfatizar junto a ele, que me pareceu ser pessoa muito séria e responsável e amar o “nosso” menino, que estimulasse o filho a estudar. E emendei com um pedido para que ele lembrasse Diadorim da aula de sexta-feira.
Também ontem, terça-feira, no caso, como sempre cheguei mais cedo na escola. Quando fui pedir a chave da sala na cozinha, uma das senhoras se dispôs a abrir a porta para mim e insistiu, mesmo depois de eu dizer que não precisava se dar ao trabalho, eu já conhecia qual era a chave. Mas ela, Dona Liudinha queria uma prosa. Sobre Grande sertão: veredas. Disse que tinha dado uma olhada em três, quatro páginas do livro e ficara com uma impressão que queria confirmar comigo: a linguagem do livro, segundo ela, retrata a forma de falar dos “antigos”. Ficamos ali conversando sobre isso, um dos temas mais fascinantes e polêmicos do rosianismo.
O encontro me encantou mas deixou um gosto amargo. Foi um erro não ter pensado em uma turma na qual estivessem presentes estas profissionais tão importantes para a escola e também para os alunos, com quem desenvolvem laços de carinho e respeito. Falha minha. Se o sertão mineiro me der outra chance não vou mais errar nesse ponto.
Agora sim, apertem os cintos porque vamos ao diário de hoje. Em dias como esse, falo em voz baixa para os deuses: — Se quiserem me levar hoje eu não vou reclamar. Porque Riobaldo é sábio quando afirma: “Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia.” Eu rezo por essa cartilha, só existe e hoje e eu mordo ele com força e um bocadinho de jeito. Se viver é uma arte, hoje foi uma obra-prima.
Primeiro vamos aos culpados, um casal. Ela, descendente de gerações e gerações de fazendeiros enraizados na terra, deu uma de Medeiro Vaz de saias, tocou fogo na propriedade e só não sai por aí em busca de justiça por ser missão impossível nesse mundão de hoje. Mas vive a buscar incessantemente as belezas do sertão mineiro, vagando pelos cantões mais remotos, para provar que a beleza resiste e é uma arma revolucionária.
Ele, o marido, é o último descendente dos índios tucujús, que o Wikipedia, esse bobão, diz que foram extintos em 1758. Para casar com ela teve que provar sua aculturação profunda em três etapas: passou seis meses se alimentando só de pão de queijo, em seguida, uma quarentena tomando café com muito açúcar e broa de milho. A terceira e última provação: passar um ano comendo tutu e bebendo cachaça como desjejum. O valente silvícola graduou-se em mineirismo com honra ao mérito, depois de ser capaz de falar 17 vezes “uai” em dez minutos com entonação perfeita.
Tudo brincadeira, é claro. Quanto mais feliz, mais bobo eu fico. Cynthia é geógrafa e funcionária federal da Justiça de Trabalho. Allyson é engenheiro agrônomo e em outra encarnação nasceu no Amapá. Eram vizinhos, agora dividem a casa, a vida e a paixão por descobrir novos lugares.
Pois esses dois seres humanos humanos são meus amigos. Leitores assíduos da minha folha urucuiana, repararam no meu desejo de vir a conhecer uma cachoeira. E tomaram a si a hercúlea tarefa. Combinamos de nos encontrar no restaurante da Branca, em Garapuava, distrito de Unaí, cidade onde moram. Lá eu iria amarrar meu burrinho e embarcar no poderoso jeguão do casal, acostumado aos caminhos mais ásperos. Mas ainda não chegamos nesse ponto.
Montar no burrinho antes das cinco e meia da manhã foi uma experiência. Fui fotografando a mudança do céu, que aos poucos era colorido por sua majestade imperial excelentíssima o astro-rei. O sol, esse vaidoso, disputava com uma lua quase cheia brincando entre as nuvens cor de rosa parecendo algodão doce. Era como um cinema ao ar livre em movimento. Só parei já em Arinos, para fotografar uma placa com a bela frase rosiana: “Rio meu de amor é o Urucuia”.
A lua faz uma pontinha sensacional nessa foto, deitada em um céu púrpura claro. O burrinho, sempre discreto, aparece ao fundo para mostrar que não é foto montagem. O sol, confirmando minha tese sobre o espírito competitivo da macharia, revidou brilhando por sobre um lindo milharal como se fosse recheio do sanduíche de duas nuvens cinzentas.
Fellini estaria babando mas a minha alegria durou pouco. Logo vi um pivô, mecanismo de irrigação que pode ter até um quilômetro de comprimento e bebe a água de todo rio, riacho, córrego e poça de chuva que encontra pela frente. Finalmente, depois de míseros 133 quilômetros, cheguei em Garapuava, distrito de Arinos. Cynthia tinha me avisado para não atravessar a localidade de forma apressada, pois iria passar direto e não ver o restaurante de Dona Branca. Segui o bom conselho e estacionei o burrinho ao lado do possante animal montado por eles.
Entramos para tomar um café e comer pão de queijo. Eu e Cynthia, porque Allyson já comeu pão de queijo suficiente para três vidas. Quente, grande e com queijo, o pão de queijo estava bom. Dona Branca, esta santa senhora, estranhou um bocado a minha carioquice mas teve misericórdia e fez um café puro. Isso e mais uma bela broa de milho, que o ex-silvícola também dispensou, e nós estávamos prontíssimos para ganhar a estrada novamente.
Céu azulinho, montados em um animal poderoso, com dois guias excelentes, desta vez nada atrapalharia meu plano de conhecer uma cachoeira no sertão. Quer dizer: nada fora o frio de 17 graus às sete e meia da manhã. Por isso decidimos passear um pouco, esperar o sol indolente resolver trabalhar um pouco, antes de ir aos finalmente.
Eles conhecem tudo nessa região. Primeiro passamos por Uruana, cujo portal informa: “Cidade das cachoeiras”, ao que parece são mais de uma dúzia. É um município que começou a ser formado somente em 1962. Hoje conta com pouco mais de três mil almas. Mas que almas! Logo vimos uma passeata por uma causa nobre. Centenas de crianças e adolescentes caminhavam pelas ruas da cidade em defesa dos seus direitos. A faixa dizia: “Criança tem que brincar e não servir de brinquedo.” Infelizmente não tive tempo de parar para perguntar se tinha havido algum incidente específico que tivesse despertado o evento. A adesão deve ter sido maciça, Cynthia comentou que pelo tamanho da população todas as crianças da cidade deviam estar ali. A organização foi do Conselho Tutelar. Sei que foi lindo ver uma coisa dessas, sobretudo no Brasil de hoje.
Uruana é simples, mas bem cuidada e com seus encantos. Tem uma igrejinha de duas torres que nos ganha nas cores: toda rosa com frisos brancos. Passamos pela rodoviária, mínima e deserta. O casal jura que nunca conseguiu ver alguém ali em todas as vezes em que estiveram no município. O ponto alto, todavia, é um bar instalado em uma casa humilde, mas pintado em dois tons de azul e com um título sugestivo: FIM DE TARDE. Cynthia, rindo, disse que era o happy hour da roça.
Como a estrela do nosso sistema planetário recusava-se a cumprir o seu papel de aquecer a terra, tínhamos medo de encontrar as águas da cachoeira congeladas (frase que contém um certo exagero) e meus amigos decidiram que devíamos passear mais um pouco. Atravessamos três simpáticos cursos d’água: o ribeirão Sussuarana, o córrego do Pasto do Boi e o ribeirão Ilha. Todos foram cruzados por sobre românticas pontes de madeira que ficam muito bem na foto mas geram certo trepidamento cardíaco (carioca é medroso etc).
Em seguida encaramos pouco menos de vinte quilômetros de estrada de terra razoável, enfrentada com coragem indômita por nosso ex-silvícola acostumado a conversar com onças e a laçar jacarés com cipó. Adentramos um pequeno distrito de Arinos com apenas 600 habitantes e nome impecável, rosiano: Sagarana. Sua história também é bonita, fruto da luta dos agricultores pela terra, foi o primeiro P.A. (Projeto de Assentamento) de Minas Gerais, estabelecido em 1974, em plena ditadura. As casas são simples, mas bem cuidadas, inclusive uma, com flores na porta que encantou Cynthia. Fico surpreso ao ver que o distrito tem uma biblioteca instalada em uma casa pintada de branco. À porta, havia dois garotos, bom sinal.
Provando sua vocação de luta, Sagarana já teve uma importante associação de artesãos, liderada por Dona Gercina Maria, que hoje tem direito a estátua à frente do prédio hoje fechado. O projeto “Tecelagem das Veredas” conseguiu inclusive financiamentos estrangeiros, até do Japão. Mas o envelhecimento e falecimento da maioria das fiandeiras, sem que as novas gerações as substituíssem, levou ao encerramento dos trabalhos. Ao menos por enquanto.
Nossa última e muito positiva impressão de Sagarana são as lindas paineiras em flor que transbordam de cor de rosa para além dos muros. Torcemos por ti, Sagarana!
Allyson e Cynthia, ao contrário do sol, são incansáveis. Resolvem me mostrar um rio que deságua no meu Urucuia, o São Miguel. Levam este carioca a um belo recanto sombreado onde se ouve a música do São Miguel, “um rio é sempre sem antiguidade”. Para meu espanto, um imenso caminhão, devidamente fotografado, se enfia pelas verdes águas e vai até a outra margem, aproveitando que ali o rio é bem raso. Vau de caminhão eu nunca havia ouvido falar. É que a ponte, sempre de madeira, não suporta muito peso.
Finalmente era chegada a hora: Cachoeira da Jibóia lá vamos nós. É simplesmente a maior da região, a mais espetacular, como veremos. O caminho para lá: seis quilômetros de estrada de terra que parecem muito mais. O caminho é estreito, só dá para um carro por vez. É um sobe e desce danado, com trechos em é que possível ficar atolado ou quebrar a suspensão. Ainda bem que tínhamos no volante nosso bravo tucuxí, que se valeu do conhecimento ancestral do seu povo e de uma ou duas mandracas para atravessar aquele Liso do Sussuarão.
Já era cerca de meio-dia e primeiro tratamos de fazer um piquenique. Estou lendo um romance policial em que dois rapazes, chamados a conversar com um mafioso, vão até o restaurante do capo. Chegando lá o chefão diz: — Não sei se vou fazer negócio ou matar vocês. De qualquer maneira, antes é preciso almoçar. Quem somos nós para ignorar esse ensinamento?
Improvisamos uma mesa com tijolos largados por ali e pedras lisas fazendo de tampa. Cynthia e Allyson haviam preparado um banquete. Destaque para as panquecas de carne recobertas por cenouras raladas e pimenta e para os sanduíches de queijo e salame. De sobremesa, um bolo de chocolate divino.
Preparados, seguimos a trilha por não mais de cinco minutos até ficarmos de frente com a magnífica cachoeira com mais de 144 metros de queda d’água (quase um campo de futebol e meio), despencando com um volume e uma força que o insignificante corpo humano não consegue medir. Ali temos a maravilhosa sensação da nossa pequenez diante da força da natureza.
Esse lugar deveria ser tombado e virar um parque nacional, quiçá planetário. As águas batem no lago e revoluteiam em ondas de vapor em uma neblina branca sublime. Se você, caro leitor, cara leitora (um bocadinho de adulação de vez em quando é bom) ainda tem um coração, haverá de sentir: “Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.”
“uma borboleta vistosa veio voando (…) e era uma borboleta dessas de cor azul-esverdeada, afora as pintas, e de asas de andor. — “Ara, viva, maria boa-sorte!” — o Jiribibe gritou. Alto ela entendesse. Ela era quase a paz.”
Voltamos para o bar de Dona Branca, em Garapuava, onde me despedi dos meus amigos. Além de um dia de vida verdadeira, bem vivida, me agraciaram com um lindo quadro bordado de um ipê cor de rosa. Este carioca velho, medroso e sem valor que vos escreve, não merece, mas, mesmo assim, agradece:
Obrigado, Cynthia, obrigado Allyson! Este humilde diário é todo ele dedicado a vocês e a vossa hospitalidade incomparável.
E, podem deixar, eventuais processos por difamação correm por minha conta. Maximé!