Diário do Urucuia 026 – A era do gelo, para que servem os envelopes e histórias de seu Vanderlei
O primeiro sinal da minha inadequação ao mundo foi a famosa revolta do pijama aos sete anos de idade. Quer dizer, antes teve o questionamento da oração, uma forma muito repetitiva para se agradecer e pedir a Deus. Mamãe liberou o diálogo livre com o Criador. Logo depois, anunciei bombasticamente que não vestiria mais pijama, gostava de me virar para lá e para cá e os botões machucavam. Desta vez, mamãe insistiu, dizendo que se eu tirasse o pijama ela entraria no quarto e me obrigaria a colocá-lo novamente. Diante de uma pristina argumentação cartesiana de que ela teria que fazer isso várias vezes por noite durante todas as noites, mamãe se rendeu. Foi minha primeira vitória contra as instituições.
Tudo isso só para dizer que, desafiando minhas mais arraigadas convicções, esta noite fui obrigado a dormir de calça de moletom, camisa e meias. E mais: no meio da noite, com frio, vesti um casaco. Porque parece ter sido o início da era do gelo e de manhã chegou a fazer seis graus em Urucuia. Ou vocês acham que eu abro mão dos meus princípios assim tão facilmente?
Estou até pensando em recomendar ao empreendedor-mór a construção de lareiras nos quartos deste hotel, vai dar manchete em todos os jornais. E vocês, não se esqueçam de trazer ceroulas, suéter, boné e luvas quando vierem ao sertão. O mundo está acabando e dando aviso, a gente é que não está prestando atenção.
Por tudo isso, hoje resolvi ficar na toca, transcrevendo mais uma entrevista com uma mulher sertaneja de pensamento, força e ação que logo apresentarei a vocês. Hoje é um daqueles dias calmos de organização. Fui à papelaria comprar envelopes. Eu e minha filha compartilhamos uma paixão por livrarias e papelarias. É difícil sairmos de um desses lugares sem comprar alguma coisa. A papelaria de Urucuia é boa, moderna, com ótimas máquinas de fotocópia e impressão. Além dos envelopes, não resisti: comprei duas canetas e dois bloquinhos de anotações.
Para que servem os envelopes? Mesmo os alunos e professores que não vieram às aulas irão receber as folhas que serão distribuídas durante o curso. E os que vieram irão receber seus certificados de participação no curso devidamente envelopados. Rituais ajudam a cristalizar o significado e o fortalecem. Além disso comprei uma pastinha azul para colocar as folhas que Diadorim irá receber.
Depois voltei para o acampamento, não sem “sofrer” uma epifania: a visão de três araras canindé. Até então, já no vigésimo sexto dia, só havia visto araras sozinhas ou, mais frequentemente, em dupla. Depois do sete, o três também é um número cabalístico. Parece que voam em câmera lenta, sem fazer esforço, o olhar da gente fica paralisado, o tempo fica em suspenso. É uma das visões mais bonitas da viagem. Não é o vôo nervoso dos pássaros pequenos, dos periquitos, por exemplo. É um vôo imperial, majestoso.
Também deixei um recado para seu Vanderlei combinando de jantar no Bar da Balsa. A comida é muito boa, e a conversa é melhor ainda. Por convenção urucuiana (válida em quase todo o planeta), homem não diz que está com saudade do outro e sim: — Tá sumido, já se enrabichou por alguma urucuiana, não fala mais com os pobres e coisas do gênero. Mas, como eu sempre abro o meu coração para vocês, estou mesmo com saudades do meu amigo arremessador de pau em galinhas.
Sentamos em mesa de tosca madeira cheia de imperfeições magníficas, cicatrizes do tempo e uso. Sobre ela, um estilingue, prova de que a guerra contra as galinhas continua, embora ele diga que agora estão respeitando o espaço do bar. Ele está bebendo uma cachaça com carqueja e não quer comer nada, diz que a comida atrapalha o efeito da bebida. Só come depois.
Ao lado, o fogão à lenha, onde ele esquenta o arroz e o feijão e frita generosos pedaços de peixe à milanesa, caranha, provavelmente. Fez também uma saladinha com alface, tomate, pepino e azeitonas. Estava tudo delicioso, nada como uma comida caseira bem feita, quentinha, em meio ao ar gelado do início da noite. Não posso ficar muito tempo, é quinta-feira e tenho aula às sete. Mas dá tempo dele contar mais algumas histórias.
Fala que não tenho aparecido e conto que fui à Cachoeira da Jibóia. Ele diz que foi mas não viu a cachoeira. Muitos anos atrás tinha uma namorada e combinou com ela saírem de madrugada para verem o amanhecer na cachoeira. O plano era bom, mas no meio do caminho havia uma porteira fechada e o proprietário não estava. Ficaram namorando e quando raiou o dia viram um senhor que estava fazendo um café. Conversa vai, conversa vem, ele convidou os dois para tomarem café e seu Vanderlei não iria fazer essa desfeita. Dali partiram para outra cachoeira, da Ilha, onde estava acontecendo um churrasco com direito a cachaça. Essa outra cachoeira nem é uma cachoeira direito, só uma pequena queda d’água, mas depois de uns goles estava tudo muito bom. Ele nem se lembra como voltou para casa.
Já praticou motocross, dirigiu ônibus escolar, foi motorista do prefeito e dirige qualquer carro ou caminhão que você colocar na mão dele. Teve um primo rico que estava começando um negócio no Pará, a dois mil e quinhentos quilômetros de distância. Seu Vanderlei foi e voltou cinco vezes, o que nas minhas contas dá vinte e cinco mil quilômetros. Fala que adorou, só não gostou muito da comida, uns peixes cozidos sem muito tempero. Mas valeu pela aventura, passou até por terras indígenas: — Os índios ficavam no botequim enchendo a cara. A gente chegava, pagava a eles e eles voltavam pro botequim pra beber o dinheiro. Gosta de estrada, de movimento: — Tem de tudo, mulher, índio, cigano. Sempre fui de rua, quando era mais jovem era festa atrás de festa.
Ele já esteve em cada canto deste imenso estado, maior do que a França, em todo o tipo de estrada, deserta, movimentada, perigosa, de asfalto, de terra batida e naquelas que mal dá para saber onde é o caminho. Perambulou pelo sertão mais do que Riobaldo e Diadorim. No norte do Brasil, só não conhece o Acre, de resto andou para cima e para baixo. Nem consigo imaginar quantas centenas de milhares de quilômetros ele já dirigiu. Agora, sossegou um pouco.
Descubro que é libriano de 24 de setembro, dia em que acorda cedo e já começa a preparar a carne, às vezes um quarto de vaca, às vezes um carneiro, em certo ano foi um bode. Não convida ninguém, os amigos já sabem e aparecem. Mostra uma armação de metal para fazer churrasco no estilo fogo de chão que ganhou de uns gaúchos.
A melhor história de hoje: dois policiais à paisana querem apreender a moto dele, que estava com farol quebrado, ele sem documentos. Se recusa, diz que só acredita em policial com uniforme. Eles produzem os “documentos”: puxam os revólveres e apontam para ele. Diz para eles atirarem. Vira as costas e vai embora levantando poeira. No dia seguinte é preso. Por ser funcionário da prefeitura e conhecer o prefeito, sabia que seria solto no dia seguinte. Na cela em frente, os presos ordenam a ele que dê sua camisa. A frase “carece de ter coragem não faz nenhum sentido para ele.” Manda eles tomarem em algum lugar. Os presos dizem que vão matá-lo no dia seguinte, no banho de sol. Afirmam que são malandros e seu Vanderlei rebate:
— Malandro sou eu, que vou sair amanhã.
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