Diário do Urucuia 029 – O último domingo, feijoada com Zezito, museu de Arinos e as origens da Barra da Vaca
Foi na barraca de seu Catarino… comendo um pastel de queijo com suco de maracujá que eu percebi: este é meu último domingo em Urucuia, ao menos desta vez, porque pretendo voltar se os deuses forem bons. Hoje foi especial, começou, não lembro como, uma conversa que envolveu não só seu Catarino, mulher e filhas mas também a dona da barraca ao lado, dona Roseli. O mote era a ambição humana e a destruição da natureza e aproveitei para apresentar minha teoria: se mandássemos metade dos homens vivos para um planeta distante a Terra seria um lugar bem mais harmonioso. Falei 50% para não chocar a turma, minha estimativa (que cresce a cada dia) está por volta dos 80%. O pessoal riu, não imaginavam que eu estivesse falando sério.
Para digerir, nada melhor do que uma caminhada pela avenida Rosinha, ainda mais nessa manhã solar porém gelada, ajuda a aquecer. Até vi um casal de tucanos que fugiu mais rápido de mim do que os filhos fogem da Justiça e da Receita Federal. Hoje eu tinha um programa muito especial e retornei ao acampamento para me preparar.
Era dia de ir a Arinos para conversar com Ricardo Chimba e Zezito Guerreiro. Os dois são meus alunos no curso para professores e trabalham na Secretaria de Educação da cidade. Fui entrevistar Zezito Guerreiro, que tem uma belíssima trajetória, de agricultor a professor, entrevista que em breve estará nesta folha mambembe. Mas também fui conversar com eles sobre a possibilidade de desenvolver o projeto na cidade de Arinos em maio de 2023.
Cheguei, como sempre, uma hora mais cedo. E para passar o tempo, fui praticar um dos meus esportes: visita ao supermercado. Não riam, é um empreendimento sociológico além de culinário. Diz-me, cidade, como são seus supermercados que eu te direi quem és. Entrar no melhor supermercado de Arinos, depois de ir no melhor de Urucuia, é como visitar Nova Iorque vindo de Pindamonhangaba, com todo respeito. Tirei até foto do chão brilhando e das prateleiras opulentas. Além disso, comprei uns chocolatinhos.
Zezito marcou comigo no Bistrô da Val e ficamos a conversar em um quintal à sombra de uma árvore, agradabilíssimo. A feijoada — sou louco por feijoada, estava ótima, e o depoimento de Zezito foi espetacular, depois vocês saberão de tudo. No finzinho da entrevista chegou Ricardo Chimba, historiador, professor e lutador incansável da cultura em Arinos. Ele trouxe dados muito interessantes: Arinos é uma cidade de oposição nas eleições presidenciais. Lula e Dilma tiveram mais de 70% dos votos e mesmo Haddad teve 65%. Prova disso é que Bolsonaro veio a Arinos em setembro de 2021 mas não foi ao centro urbano, se encontrou com empresários em uma fazenda, todos interessados no potencial do município, que é enorme, para o agronegócio: ainda há terras a devastar e meia-dúzia de bons rios para fornecer água abundante.
Elogia o programa de eletrificação rural que trouxe luz a 95% das moradias rurais no primeiro governo Lula e se pergunta o porquê de Lula não explorar o “Luz para todos” politicamente: “— Nós somos da roça. É muito cruel, quando chegar à noite, você conviver com a escuridão, você não ter um rádio, não ter uma televisão. Nós convivemos com isso aqui durante muito tempo. Agora nós vimos a transformação: você aperta o botãozinho tem luz, tem geladeira, tem televisão. E o telefone, a partir do momento em que todos podem se comunicar, muda tudo.” Aponta o momento atual como refluxo das conquistas e faz uma avaliação apocalíptica: “Se esse presidente atual ganhar a eleição, é guerrilha ou a servidão absoluta.”
Ricardo diz que o trabalho político deles tem sido todo nas redes sociais, este tem sido o instrumento fundamental. Eu lembro a ele o provérbio do mundo do samba: “Quem é ruim se acaba sozinho”. No caso, o Coiso foi beijar a mão do Putin antes da nefanda invasão da Ucrânia, sem imaginar que o conflito acirraria o crescimento da inflação que enfraquece a sua popularidade.
Deixando a política de lado, fomos conhecer a história, as origens do município criado em 1963 com o nome de Arinos mas que existia como localidade desde o século XIX com o belo topônimo de Barra da Vaca, com direito até a um pequeno mas delicioso conto de Guimarães Rosa em Tutaméia, seu último livro publicado em vida, meses antes da sua morte. Em sua imaginação ficcional, assim Rosa descreve o povoado mínimo: “Era ali ribanceiro arraial de nem quinhentas almas, suas pequenas casas com os quintais de fundo e onde o rio é incontestável: um porto de canoas, Barra da Vaca, sobre o Urucúia.“ Na história, um homem vindo não se sabe de onde, chega bastante abalado de corpo e alma e de início é bem acolhido pelo povo da localidade. Mas logo se fica sabendo que “Era brabo jagunço! um famoso, perigoso.” Aí a prosa mudou de figura mas não vou estragar o prazer de vocês em ler estas três páginas de gênio.
Também foi o Zezito me mostrar o local onde a cidade nasceu, na beira do Urucuia como diz o conto, onde havia uma balsa para atravessar as pessoas para o outro lado. Ali perto havia uma rua chamada rua da Palha, porque as casas eram todas de pau-a-pique com cobertura de palha. Zezito, que tem 40 anos, chegou a ver isso.
Para alguém que estudou e lecionou história, é emocionante ver um lugar assim. Não é tão fácil isso acontecer. Por exemplo: o local de nascimento do Rio de Janeiro, o Morro do Castelo, foi arrasado na década de 1920 em nome de motivos higiênicos mas, na verdade, para expulsar uma população “indesejada” no centro de uma cidade que se queria a Paris tropical.
Mas, na verdade, o surgimento de Barra da Vaca foi complexo. Arinos fica na margem esquerda do Urucuia, mas o primeiro núcleo de povoamento, Morrinhos, ainda hoje existente, fica na outra margem, a direita. No século XIX era um arraial cujos moradores se dedicavam à agricultura e à pecuária. Abandonado pelas autoridades, sem dispor de justiça e assolado por desordens e mortes, os moradores decidiram se retirar dali. Foram para a outra margem do Urucuia (a esquerda) erguendo uma nova capela, marco da povoação repatriada.
Mas ainda faltava explicar o nome: Barra da Vaca. É que há uma vereda, que já foi muito maior, já teve muito mais água mas ainda resiste, chamada Vereda da Vaca, porque era funda e se acreditava que as vacas nela atolassem. Naquele tempo, vereda também era chamada de “barra” segundo o historiador Ricardo Lourenço Neto (Ricardo Ximba), daí Barra da Vaca. Ou seja, a localidade tinha nome de vereda, nada mais rosiano. No início do século XX, a povoação dispunha de escola, uma pequena casa comercial e um estaleiro que fabricava os barcos que permitiam a navegação, do rio Urucuia até municípios grande e importantes à beira do São Francisco: São Romão, São Francisco, Pirapora e Januária. Em 1923, o arraial da Barra da Vaca, distrito de São Romão, vai ganhar o nome de Arinos, homenagem ao jornalista, jurista e escritor Afonso Arinos de Melo Franco, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de um livro de contos inspirado na região chamado Pelo sertão.
Mas antes disso tudo eles me levaram ao interessante Museu Histórico de Arinos, sediado em um belo e rústico exemplar de casa colonial azul e branca com seis portas e três janelas. Zezito e a equipe de Ricardo, quatro dedicados servidores da Secretaria de Cultura de Arinos, recuperaram o prédio que estava abandonado, trocaram o telhado e começaram a receber doações de objetos para formar o acervo.
Originalmente, o prédio fora a residência de Crispim Santana, um homem que muito contribuíu para o desenvolvimento da localidade. Depois de um rixa terminada em morte, ele vem de Petrolina, Pernambuco e se coloca sob a proteção do poderoso fazendeiro Saint-Clair Fernandes Valadares que o encaminha para Arinos em 1925, onde Crispim Santana funda a primeira casa comercial da região, valendo-se do fato de que era um ponto de parada dos viajantes. Quatro anos depois, Saint-Clair vai doar terras para o desenvolvimento do futuro município.
O museu ainda está sendo organizado, mas já há elementos interessantes da cultura material do sertão: os ferros de carvão para passar roupa, as alpercatas de couro tão mencionadas em Grande sertão: veredas, malas e baús antigos de couro, uma espetacular caldeira do barco a vapor que transportava pessoas e mercadorias de Arinos a São Romão, um móvel de um coronel importante na região, objetos utilizados no manejo de vacas, tacho para fazer farinha, grandes serras a serem empunhadas por dois homens para cortarem árvores e muitas outras coisas.
Uma das coisas mais bacanas do museu foi criação de Napoleão Valadares, autor de um livro sobre a história de Arinos. A pessoa que entra ou sai do museu vê logo uma caixinha com papéis dentro e os dizeres: “Pegue um soneto”. São sonetos que ele escolheu, imprimiu e recortou para colocar ali, uma espécie de “biscoito da sorte poético”. Peguei o meu:
“Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.
Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.
Vi-te; e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!
Mas ai! cedo fugiste! … da saudade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo
Uma idéia, uma queixa, uma saudade!”
Fagundes Varela
Ricardo explica que querem utilizar a literatura de Guimarães Rosa para transformar Arinos em um polo de turismo literário, que traz renda, empregos e não é destrutivo. Já há uma sala totalmente dedicada a João Guimarães Rosa e a suas obras. Mostra um gramado em frente ao museu e fala que pensa em fazer uma estátua de Rosa. Sugiro a ele que faça pequenas estatuetas com bichos e pássaros da obra do Rosinha: o burrinho pedrês, os manuelzinhos da croa, a suçuarana… Com plaquetas com as passagens do Rosa. Pode virar um parque onde trazer as crianças. Temos que difundir o rosianismo desde cedo.
E por falar no Rosinha, um dos itens da minha visita era conversar sobre a possibilidade de repetir em Arinos, com alguns aperfeiçoamentos, o trabalho que irei acabar de desenvolver em Urucuia na próxima semana. Expliquei a eles que estava pagando uma promessa, uma dívida que contraí com Urucuia e com o Rosinha desde que me batizei rosiano em agosto de 2016. De lá para cá a minha vida tomou um rumo que eu não poderia prever. Basta dizer que estou alforriado da universidade há seis anos e em nenhum momento eu senti o “vazio” dos aposentados, muito pelo contrário, a cada dia vejo mais significado e sinto mais alegrias neste trabalho de ser Pastor itinerante do Evangelho rosiano dos primeiros dias. Por conta disso, arquei com todas as despesas da vinda para cá e da minha permanência por um mês. Mas expliquei ao Ricardo e ao Zezito que da próxima vez eu espero que o município forneça um subsídio neste sentido, embora não haja necessidade de me pagar qualquer remuneração. O que eu estou fazendo é uma retribuição ao Rosinha, para mim é isso que significa ser rosiano, não é somente apreciar a obra, é fazer algo para difundi-la.
Ricardo, que é da Secretaria de Cultura do Município, além de ser professor, disse que eles têm todo o interesse em me trazer e que o montante necessário é bem factível de ser conseguido, embora os ventos políticos sejam sempre imprevisíveis. Depois ele me perguntou se eu tenho algum problema de imagem, porque evito sair em fotos. Explico que não tenho problema algum, tanto que minhas aulas são gravadas e distribuídas. Se for necessário, garanto a ele, gravarei vídeos sobre o projeto, tanto para convencer as “autoridades” quanto para convidar as pessoas a se inscreverem. Mas não sou instagrâmico, de parar para posar aqui e ali, prefiro tirar fotos da natureza e dos processos que observo, acho tudo isso tão importante que uma foto minha se torna menor e dispensável.
Um último ponto da nossa ótima conversa foi a mudança do projeto no sentido de incluir todos que fazem parte do ambiente escolar, inclusive merendeiras, faxineiras, todo mundo. Ricardo abriu um largo sorriso e disse que em Arinos a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é fortíssima e com certeza um terço dos alunos serão provenientes daí.
Somente esta perspectiva de voltar ao sertão para fazer o que mais gosto nesta vida é que consegue conter a onda de melancolia que ameaça bater na minha praia neste domingo em que me vejo diante da minha última semana de aulas em Urucuia.
Se tudo der certo, irei aprofundar e melhorar o trabalho, em um novo local, beneficiado pela experiência anterior, junto a um pessoal bacana e entusiasmado feito o Ricardo e o Zezito. Sem falar que continuarei às margens do meu rio.
Urucuia fica a apenas cinquenta e dois quilômetros de Arinos. Quando bater a saudade, poderei montar no burrinho para almoçar com seu Vanderlei, conversar com Leninha e Nilsinho, devorar o super “Mineirão” no Brasa Burger de Núbia e Rogério, ou até, como fiz hoje, comer um pastel e beber um suco de maracujá na barraca de seu Catarino. É como dizem por aqui: quem bebe a água do Urucuia sempre volta.
P.S: Uma fonte importante para elaboração deste diário foi o texto “História da cidade de Arinos”, de autoria do historiador Ricardo Lourenço Neto, disponível no site oficial da cidade de Arinos.