/Diário do Urucuia 031 – Piranhas no café, Diadorim: morte e renascimento, ainda não terminou; Faixa bônus: entrevista com Zezito Guerreiro

Diário do Urucuia 031 – Piranhas no café, Diadorim: morte e renascimento, ainda não terminou; Faixa bônus: entrevista com Zezito Guerreiro

Diário do Urucuia 031 – Piranhas no café, Diadorim: morte e renascimento, ainda não terminou; Faixa bônus: entrevista com Zezito Guerreiro

Diadorim vai morrer hoje. Todas as vezes em que isso acontece, experimento uma tristeza real, tão dura e inescapável quanto a consciência da minha própria morte. Rosa dizia querer capturar a vida e não fazer literatura. E, para quem é verdadeiramente seu leitor, Riobaldo, Hermógenes (sim, ele também), Joca Ramiro, Sô Candelário, o Fafafa e muitos outros passam a fazer parte da nossa existência. Por isso, saber que hoje Diadorim vai morrer para os alunos na aula desta tarde é uma tristeza anunciada, que vem misturada ao encantamento estético, à admiração por um escritor capaz de uma cena dessas que se esculpe em pedra e flor na nossa alma como um sonho que não passa.

Desço para tomar café e encontro um bando de jagunços de dentes afiados feito piranhas, como no acampo da Jaíba. Eram uns oito ou nove e já haviam destroçado todo o pão, todo o queijo e presunto, só sobravam alguns borrachudos pães de queijo. Como se dizia no meu serviço militar: a cavalaria não recua, apenas dá meia-volta e avança, no caso, de volta para o acampamento.

Não parecia ser meu dia de sorte, mas é sempre bom lembrar a lição rosiana: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”

Tanto assim é que os deuses resolvem sorrir. Acabo encontrando Joca Ramiro, pai do nosso Diadorim urucuiano. Está terminando de construir mais um quarto do hotel no segundo andar, onde estou. Esbarro com ele no corredor. Suas mãos de pedreiro são tão grossas que ele estava usando uma lixa de parede para tirar o excesso de massa de cada dedo. Mas a alma não está endurecida. Conta um pouco da sua história. É de Japonvar, na margem direita do Velho Chico, perto de Luislândia e Brasília de Minas. Até os onze anos viveu na roça com o pai e a avó. Quando o pai dele morre, a avó “enlouquece”, fica tão abalada que é convencida por um Ricardão da localidade a passar todas as terras para o nome dele. De uma hora para outra, seu Delvan e irmãos têm de se mudar para a cidade.

Os irmãos, anos mais tarde, vão trabalhar em Brasília, como pedreiros. Com quase 18 anos ele também vai e um mestre-de-obras, percebendo a sua habilidade, em um mês o promove a pedreiro. Acaba conhecendo a atual mulher na cidade natal dos dois. Diz que lá a festa de aniversário da cidade é uma espécie de potlatch de biscoito: você pega o biscoito e o pão de queijo que quiser e ao lado se serve de café, durante três dias seguidos. Haja biscoito.

Acabou vindo para Urucuia: — Aqui não é ruim, não, repete ele mais de uma vez, no seu jeito mineiro de elogiar com moderação. Veio, fez um trabalho, apareceram outros, foi ficando. Todo o segundo andar, inclusive meu acampamento, foram erguidos pela mão de seu Delvan, nosso Joca Ramiro. Fala que Diadorim anda lendo as folhas que enviei para ele e diz que vai ler o livro.

Em seguida vou até a loja do Junior fechar a compra da Alba Valéria e deixá-la para alguns ajustes e consertos. Junior é de Brasília, onde trabalhava com bicicletas. Veio para cá ser padrinho de um casamento e trouxe uma bicicleta para um amigo seu. Logo pediram que trouxesse outra e mais outra. Ele acabou se mudando para cá, por causa da tranquilidade, pela ausência da vida corrida e perigosa da grande cidade. Mais um que Urucuia enfeitiçou.

Depois, resolvi probleminhas: a troca do retrovisor direito do burrinho, comprei iogurtes no supermercado, almocei no posto e tomei meu chicabom, a madeleine que uso para me conectar à infância. Também passo na Dona Vanderlucia, a artesã, para uma foto com ela. Tirei uma soneca e comecei a escrever este diário.

Quando peguei burrinho para ir à escola, quem passa em sua bicicleta verde? Diadorim, que me acena. Deve ser obra do Rosinha, só pra me dizer: — Diadorim nunca morre, seu cariôco, Diadorim é eterno. Sim, devo confessar que falo com o Rosinha em sala e fora dela. E às vezes consigo captar as mensagens que ele envia. Isso não é novidade para os rosianos.

Diadorim foi o primeiro a aparecer. Como ele só tinha assistido a uma aula, fiz um resumo da história em 15 minutos até o ponto da aula de hoje. Tive vontade de rir quando ele contou que sua mãe agora o coloca para ler três páginas por dia do livro. É inacreditável a força que tem um pequeno estímulo, de alguém que se importa e acredita. Parece que toda a família se mobilizou. Foi seu Deltan que falou para ele vir hoje. Mas o melhor é que Diadorim, que tem um tique engraçado de apertar os olhos, está mesmo presente à aula com gosto, prestando atenção e a prova disso vou relatar abaixo. Para mim, é uma alegria inigualável ver essa garrafa chegar à praia.

O fato é que o Diadorim urucuiano, miúdo e valente, assistiu à morte de Diadorim, entendeu a aula e perguntou como fazer para receber os vídeos do Youtube, o que é uma enorme demonstração de interesse. Expliquei que ele teria que ter um e-mail, coisa que ainda não tem, porque os vídeos não estão listados, é preciso receber um e-mail para vê-los. Só o pai tem celular, mas ele vai dar um jeito, tenho certeza. O curioso é que ele ajudou o pai a erguer este segundo andar onde estou. Perguntou se estou no último quarto e disse que chapiscou as paredes dele. Não é casualidade, gente, é rosianismo puro.

Para mim foi uma aula com um grau de dificuldade acentuado, não foi fácil transmitir o desespero de Riobaldo ao se ver impotente diante da morte do seu grande (e na minha opinião único) amor. Nem tampouco o impacto que a revelação do segredo de Diadorim teve sobre ele. É que os alunos são tão jovens que parecem distantes demais da ideia da morte e do peso existencial que ela proporciona (é exatamente este o verbo que quero utilizar).

Todavia, quando perguntados, um a um os alunos que estava tudo bem, estavam entendendo. Normalmente isso não quer dizer grande coisa. Mas também olhei nos olhos deles e delas e acreditei. Insisti que fizessem perguntas, que acabaram só vindo do pessoal da Cia. de Teatro Grande sertão, com quem sempre brinco dizendo que estou querendo uma vaga de ator nas peças deles. Por enquanto só concordaram que eu carregasse os cenários, sou muito canastrão. Aliás, eles farão um ensaio aberto de uma nova peça deles para a turma na sexta-feira.

Ainda teremos mais uma aula e suspendi a de hoje quando chegamos ao abismo que se abre na narrativa quando Riobaldo diz ao doutor:

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba.”

Os diários de Urucuia, entretanto, não acabaram, só vou embora no domingo de madrugada.

Até lá, prometo continuar a fazer a crônica do lançamento de garrafas ao mar do acaso.

Faixa bônus: Entrevista com Zezito Guerreiro – Parte 1

O homem que tenho diante de mim, nesta bela manhã no acolhedor Bistrô da Val, é um milagre brasileiro. É filho de agricultores, agregados numa fazenda, onde se conheceram e casaram sob o estímulo dos patrões. Meu entrevistado desde cedo trabalhou no campo ajudando os pais, pois era o filho mais velho. Hoje estuda Letras e, em breve, depois dos quarenta anos, será um entusiasmado professor de Português e Literatura. O nome dele é Zezito Guerreiro.

Sua vida mudou graças a uma decisão de seu Amadeu, que embora analfabeto, se esforçou para trazer os filhos para a cidade, para que pudessem estudar. Comprou um lote à prestação e lá instalou os filhos e a mulher, dona Geraldina, que tinha a quarta série. Seu Amadeu continuava no campo trabalhando na roça, tinha mão boa para plantar, o que garantia colheitas fartas. Zezito salienta que isso era mais fácil porque à época chovia muito, ao contrário de hoje, em que as roças não “vingam” por falta de chuvas. A única dificuldade era a abundância de pacas, capivaras e mutuns (uma ave) que às vezes comiam a colheita. Mas o pai conhecia o tempo de plantio, “sabia o que deveria ser plantado na lua nova ou na lua cheia, vivia de acordo com a lua, como se fosse um índio”.

Enquanto isso, na cidade, a mãe, para ajudar, “batia roupa”, lavava roupa para fora. O pequeno Zezito também se virava, vendendo picolé, vendendo dindin (sacolé) e outras coisas pelas ruas da cidade. E estudando, na medida do possível. Quando limpava o quintal do primeiro prefeito da cidade, o prefeito pagava ao pai e vinha com as mãos cheias de cadernos e lápis que entregava para Zezito dizendo: “Aqui, menino, já viu …. que é pra você não puxar enxada pra ninguém”. Anos mais tarde, quando esse prefeito já tinha idade avançada, Zezito trabalhou para ele, ajudando-o a fazer compras e serviços gerais.

A família se mudou para Arinos quando ele tinha sete anos, a tempo de se matricular na primeira série. Mas em muitos períodos, por ser o mais velho, ia para o campo ajudar o pai, o que fez com que fosse reprovado várias vezes. Não desistia e se matriculava de novo. Só recentemente é que conseguiu terminar o Ensino Médio e agora está no quarto período de Letras da Unopar, em um curso presencial (exceto na pandemia).

Zezito já é um escritor. Tem mais de duas mil frases: “O grande vitorioso não é aquele que vence, mas o que faz da derrota um grande aprendizado.”; “Miseráveis são todos aqueles que deixam de lado seus sonhos para seguir os sonhos dos outros”

Já rascunhou seu primeiro livro, O diário de um guerreiro, que conta a luta da sua vida, sobretudo para estudar e se tornar professor. Assim que se formar pretende ele mesmo corrigir e editar o livro para que fique pronto para a publicação.

Seu primeiro contato com a literatura veio através da música de Raul Seixas, das letras de Paulo Coelho, que o faziam pensar: “a literatura foi entrando em minha mente, de tanto ele escrever o que ele sentia, eu fui escrevendo e sentindo também, pegando o jeito, o ritmo”

Ouviu falar de Guimarães Rosa pela primeira vez na 8a série, mencionado por uma escritora. À época, todavia, não teve acesso aos livros de Rosa, isso só aconteceu em Brasília, onde trabalhou doze anos e pode conhecer Sagarana. Em Brasília primeiro trabalhou com jardineiro junto com seu cunhado, fazendo cerca viva e tudo. Depois virou pintor de paredes.

Acha a literatura de Rosa muito difícil. Só agora, com o curso, é que começa a entender melhor. Antes já havia lido o Grande sertão: veredas até o episódio de Maria Mutema. Mas agora tem certeza de que vai ler até o final. E gostaria de ler várias vezes, para interpretar e refletir.

Uma professora do Ensino Médio pediu que os alunos fizessem um resumo de 20 linhas de Helena, de Machado de Assis. Depois de ler e interpretar, Zezito fez um resumo de 155 linhas tão bom que a professora disse que não seria preciso ler o livro, apenas o resumo feito por ele.

Zezito vive seu sonho e não abre mão dele por nada. Por enquanto, não se casou e só quer ter uma família depois que for professor. Até lá se mantém em forma correndo até 16 quilômetros por dia e nos fins de semana relaxando em meio à natureza com pedaladas de 105 quilômetros (só de ida) até a cidade de Buritis.

AMANHÃ, A SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE DA ENTREVISTA COM Zezito Guerreiro