/Diário do Urucuia 034 – Seu Valdevino, guardião da memória, o menino em ação e uma morena disputada

Diário do Urucuia 034 – Seu Valdevino, guardião da memória, o menino em ação e uma morena disputada

Diário do Urucuia 034Seu Valdevino, guardião da memória, o menino em ação e uma morena disputada

Pode não parecer, mas sou um professor metódico, aplicado, às vezes até sério e muito rígido quanto a certos princípios e com mão dura para defendê-los. Tenho que sentir que a turma sintonizou, que o curso encaixou, como diz Riobaldo: “O que eu quero, é na palma da minha mão.” Aí então eu deixo o menino de 12 anos tomar conta. Canto uma ária de Puccini, danço samba, faço vozes, imito personagens (meu Hermógenes foi elogiado pela turma da Cia. Teatral Grande sertão e assustou a alunada toda), faço brincadeiras com alunos e alunas, invento situações, fecho os olhos a sonhar… Nessa hora a alma se eleva e fica sensível ao toque e ao menor sinal de beleza rosiana eu sou capaz de deixar virem as lágrimas. Para mim o teste final para a carreira do magistério deveria ser esse: depois de comprovadas todas as “competências” (argh, a pedagogia e seus termos técnicos), o futuro professor ou professora deveria ser capaz de ir às lágrimas. Diga-me se tu choras e por que choras que te direi quem és.

Esse prólogo que no jornalismo antigo se chamava “nariz de cera”, tem um motivo: hoje será a última aula da minha primeira turma de rosianinhos do sertão. Sei o nome de cada um, conheço o jeito de olhar, percebo a dificuldade e o encantamento diante de algo que percebem ser muito grande e ao mesmo tempo muito próximo deles. Os certificados estão prontos, guardados com carinho em envelopes pardos com o nome de cada um: Luana, João Pedro, Daniela, Diadorim… Depois que chegarmos ao último parágrafo, à última linha, à última palavra da travessia com esse meu bando tão lindo, é certo “como o sol não acende a água do rio Urucúia” que eu vou chorar. Cada dia é renascimento e morte, cada dia é um começo e uma despedida. Há quarenta anos que vivo e morro em sala de aula, ali atravesso o Liso do Sussuarão, ali encontro meu Guararavacã do Guaicuí. Nada foi igual a esse curso que hoje termina. Não digo que tenha sido melhor, não acredito nesse tipo de avaliação. Para mim, todavia, foi uma iluminação. Em 2016 me batizei rosiano, seis anos depois, estou, com humildade e alegria, tentando fazer novos rosianos em botão. “O senhor não repare”, mas sei que vou ter que enxugar “as lágrimas maiores”. O trabalho de um guieiro rosiano se assemelha às duas formas de evitar que o Demo tome conta da alma: “Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor”.

O hotel de Habãozinho continua aprontando. A água do vaso está com cor de terra clara e a do chuveiro tem um cheiro condizente. Como este jagunço carioca tem se mostrado capaz de encarar essa hospitalidade inóspita, ele resolveu buscar o reforço do filho. A casa da família fica atrás do hotel e agora Habãozinho Jr., logo pela manhã, põe sua “melhor” seleção de breganejo-pop-rebolativo-obsceno da pior qualidade. O volume é tão alto que os primos dele em Riachinho devem estar ouvindo. Vou calçar as sandálias de couro e ganhar o mundo.

Fui atrás das buraqueiras, explico: as corujinhas que vi ontem. Só que era mais cedo, hoje só vi o buraco onde deviam estar descansando. Voltarei amanhã cedinho, quero muito um retrato dessas belezinhas. Já que estava fora de casa fui ao supermercado comprar as últimas provisões para a viagem, sobretudo coisas para o café da manhã. O frio na barriga, pensando no retorno, só cresce. Mas tenho um par de surpresas guardadas para vocês, mesmo depois de sair de Urucuia.

Mudando de prosa um pouco: almoço com Vanderlei, o último só eu e ele, porque amanhã é o almoço da turma dos professores. Chegou mais gente: um afilhado, a filha, a amiga da filha. Mas antes disso deu para conversarmos um bocado. Ele confessou que senta a bota no acelerador quando tem que fazer as viagens, só sabe andar assim. Quando precisa, descansa um pouco no carro mesmo, lavo o rosto, toma um café e pronto. Ele é muito articulado, pertence a vários grupos de zap, então sempre tem notícias. A mais inesperada: na semana anterior, um homem, que trabalhava numa carvoaria, foi devorado por uma onça. Vanderlei me mostrou a foto, não dava para duvidar, um filme de terror, sobraram só os pés do sujeito porque ele estava usando botas. Vanderlei acha que o sujeito ficou bêbado, deitou no mato e aí se deu a desgraça. Depois me mostra um vídeo do Parque Grande sertão: veredas, em que as câmeras capturam imagens de diversos animais: anta, tamanduá, jaguatirica, tatu canastra (imenso), suçuapara (veado), texugo, lobo guará e de três tipos de onça: preta, suçuarana (onça parda) e uma onça pintada de meter medo. Parece que algumas regiões, como a Serra das Araras, ainda têm sua boa cota de onças até hoje. Vocês não acreditam? Daqui a alguns dias vou compartilhar o vídeo numa edição especial.

Jussara, filha-xodó de seu Vanderlei, reclama que uma vez o pai atacou uma sucuri para salvar uma galinha. Ele conta a história com a naturalidade de quem explica quais os temperos que colocou no feijão, que aliás estava ótimo. Sentado tranquilo no terraço do bar, ouviu uma galinha cacarejando. Olhou e ela estava no meio do rio, recebendo aquele abraço mortal da sucuri. Seu Vanderlei pegou uma faca, entrou no rio e começou a cortar a cobra, chamando outras pessoas para ajudá-lo. A fera largou a galinha mas mergulhou a cabeça na água. Seu Vanderlei mais dois iam puxando o corpo dela para fora e seu Vanderlei ia cortando, até a aparecer a cabeça, que ele decepou de um golpe. Na maior tranquilidade ele corrige a filha, não aconteceu só uma vez e sim umas duas ou três vezes. Como disse Riobaldo acerca de uma história de Zé Bebelo: “podia ser verdade.”

Em seguida chegou Leninha, havíamos combinado ali para entrevistar seu Valdevino, que chegou pontualmente à uma da tarde. Pediu para ser entrevistado debaixo do limoeiro que ele plantou. É impressionante a vitalidade física e mental desse senhor de oitenta e um anos. Não lhe falta personalidade. Foi uma conversa emocionante para ele e para nós também. Nos contou sua vida de muita luta, de muito trabalho, que se confunde com a trajetória de Porto de Manga, depois Urucuia. Casou-se com uma índia, conhece o rio como ninguém e nos deu uma ideia exuberante de como era viver aqui há cinquenta anos. Em breve irei fazer um diário do Urucuia especial com a entrevista dele. Uma revelação muito preciosa foi a informação, que ele obteve junto a pessoas mais velhas do que ele, de que Guimarães Rosa teria passado por aqui. Em breve nesta humilde folha.

Fui para o acampamento escrever a parte inicial deste diário e me preparar para a última aula da turma de alunos e do pessoal da Cia. Teatral Grande sertão. Turmas são seres de curta existência e nos meus 32 na universidade me acostumei a vê-las se formarem, florescerem e terminarem pela guilhotina do calendário escolar. A melancolia sempre era curada com novas turmas e o ciclo se repetia. Com esta turma tudo foi mais rápido, mais difícil, mais ousado e mais divertido. Certa vez o Rosinha, falando do seu livro Primeiras Estórias à TV alemã, disse que a restrição era um convite à criatividade do artista. De fato, o que ele consegue fazer nos contos desse livro é espantoso. “A terceira margem do rio”, dependendo da edição, tem de 6 a 8 páginas e abre portas para debates e interpretações infindáveis. Com um professor, guardadas as devidas proporções, as limitações de tempo ou da formação prévia dos alunos também funcionam como um desafio. Por isso, além de levá-los até o símbolo final do infinito, estava muito curioso para ouvir a avaliação que eles tinham a fazer do curso. E tinha também que reservar um tempo para a surpresa.

Coloquei algumas perguntas no quadro e a primeira era acerca da maior dificuldade que experimentaram para ler o livro e se isso havia melhorado. Todos responderam, enfatizando a questão do vocabulário e também da interpretação, daquilo que eu insisti em chamar de ambiguidade, apontando para o caráter poético e metafórico da prosa rosiana. O bacana foi ver eles mencionarem o conceito da “ambiguidade” e dizerem que agora lêem de outra maneira outros textos também. Por motivo de força maior, interrompemos a avaliação quando o último menino estava falando pois chegaram as pizzas. A primeira a acabar, comprovando a adoração dos mineiros pelos galináceos, foi a de frango. Mas a de calabresa e lombinho não tiveram uma existência muito longa também. Ainda bem que também trouxe batata frita.

Não vou cansar vocês com todas as perguntas e respostas, vou apenas mencionar duas respostas que resumem tudo e mais me agradaram. Não sei se lembram que na primeira aula um aluno chamado João Pedro disse que quase não viera pensando que seria algo muito chato. João Pedro inclusive tomou coragem para ler em sala depois de algumas aulas, mesmo sabendo que o faria com grande dificuldade. Pois hoje esse menino disse que antes das aulas ele lia as palavras e até entendia, mas elas não tinham nenhum significado, ele nem conseguia guardar a história. Depois do curso, disse ele, passou a imaginar a história a viver a história. É o pulo do gato do letramento literário, a hora em que o leitor ou leitora passa a vivenciar a história, passa a se transportar. Sobre a dinâmica da aula, afirmou que era divertida, que o professor era brincalhão e, salientou ele, explicava bem e que se comportava como um menino, o que era exatamente o meu objetivo. Outro aluno chamado Jorge, que não demonstrava grande entusiasmo nas aulas, disse que agora lê algumas páginas toda a noite, dentro do que ele consegue. E que pretende ler o Grande sertão: veredas mais de uma vez. Sim, o coração vai bem e minha pressão arterial é ótima.

Em outra postagem vou pensar com calma as avaliações feitas por eles. O que eu posso dizer? Se eu fosse militar, Deus esteja, diria que a missão foi cumprida. Como sou rosiano, digo que quando a gente sonha pode virar tudo, até professor de Guimarães Rosa no sertão de Minas.

O programa final do dia parecia um prêmio: a apresentação da peça “Rio abaixo” com a Companhia Teatral Grande sertão. O teatro estava lotado, com cerca de 150 pessoas, o que é muito para Urucuia. Marcello Sannyos, autor e diretor, da peça e da companhia, fez um trabalho muito bonito de entremear passagens bem adaptadas de “A terceira margem do rio” e de “Grande sertão: veredas”, misturadas com a tradição oral urucuiana recolhida junto aos contadores de histórias da cidade. No contexto da antiga Porto de Manga, uma vila de pescadores, a história conta com o auxílio luxuoso do Caboclo d’Água e da Iara, disputando a alma de uma bela morena. Texto muito bonito e sensível, cenário todo montado com peças tomadas de empréstimo aos pescadores de Urucuia e música belíssima, bem encaixada no desenrolar da trama. Os dois atores que eram meus alunos, Judson e Luciana, brilharam e arrebataram risos do público na primeira parte da peça. Um espetáculo digno de ser assistido em qualquer praça do país.

Agora só me resta o dia de amanhã em Urucuia. Os dentes da minha existência estão prontos para mordê-lo. Que venha o sábado!

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