/Diário do Urucuia 036 – Caminho encantado, a terra do Coronel Mascarenhas, o último segredo rosiano destes diários …

Diário do Urucuia 036 – Caminho encantado, a terra do Coronel Mascarenhas, o último segredo rosiano destes diários …

Diário do Urucuia 036 – Caminho encantado, a terra do Coronel Mascarenhas, o último segredo rosiano destes diários …

Acordei em horário rosiano para o primeiro dia do retorno: 2:57. Da mesma forma, o burrinho começou a trotar às 4:17. Gosto de sair antes do sol, de ganhar cem, duzentos quilômetros antes do dia nascer. O caminho parecia encantado. Para começar, o farol me mostrou uma linda raposa, que antes de cruzar a estrada ainda deu uma olhada para mim. Neste horário é fácil ver pássaros e outros animais, sem falar no céu estrelado do sertão. Gaviões sobrevoaram o burrinho. Um carcará também. E uma trinca de araras canindé, para minha alegria, também veio se despedir. Não faltaram os periquitos batendo as asas sempre com pressa.

Foi nele que Zé Bebelo veio, numa balsa de buriti, com “seus exércitos” de cinco urucuianos. O rio Paracatu amanhecendo em dourado, vermelho e púrpura me levava a pensar nas palavras de Riobaldo, no Guararavacã do Guaicuí: “a tem horas em que me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito, sim senhor.” Mas outras belezas me esperavam nessa travessia.

No caminho, vi que o sertão resiste, ainda há muitas veredas. Pequenas, é verdade, mas algumas verdejantes, cheias de água, berço de vida e beleza. Até quando? Fotografei muitas delas, nunca se sabe se estarão lá no próximo ano. Porque os mares desertos de eucalipto também lá estavam. Quando o sol se firmou, pedi humildemente ao astro-rei (logo eu que não tenho crédito algum com ele) que queimasse aquelas plantações de morte até a última raiz sugadora de água.

Para Riobaldo, esse rio era “que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de môrro a môrro.”, agora o burrinho me trazia por cima do rio Abaeté, na barra do qual houve o encontro com Zé Bebelo que mudaria a vida do narrador, então sem rumo depois da morte de Diadorim. No Abaeté vi e consegui fotografar uns anus-brancos, soberanos em cima de um galho de árvore. Também notei dois trechos de corredeiras bonitos e desafiadores para quem quiser navegá-lo. Parece bem um rio bebeliano, simpático e feroz.

Infelizmente vi também as traquitanas com motores a supilar (enfraquecer, roubar) as águas do Abaeté. E que estão em todos os principais rios e até nos córregos de Minas Gerais. É uma sangria continua, matando a origem de toda a vida. Nas margens do Abaeté também vi o efeito do desmatamento da mata ciliar, com árvores derrubadas e trechos só de terra que logo irão assorear mais ainda o rio. É tudo uma tragédia ambiental a céu aberto disfarçada de progresso. Nem Drummondo, com sua melancolia habitual, pensaria que a sua frase poderia ser um dia tomada no sentido literal: “Minas não há mais”. Ainda há, mas vai desaparecendo a cada dia.

Em seguida, o Velho Chico, sempre grandioso e emocionante. As garças também vieram se despedir, colorindo de branco as verdes croas (pequenas ilhas) do rio. Longe do alcance da mão dos homens, faziam uma coreografia de pousos e vôos que procurei fixar em imagens. Sou péssimo fotógrafo, mas do tipo insistente, fotografo até, por acaso, conseguir alguma coisa que seja de valor. Hoje não há mais vapores no São Francisco, que antes permitia ir de Pirapora até Juazeiro-Petrolina. A diminuição do volume de água e o rebaixamento da profundidade do rio não permitem. Mas a população, em pequenos barcos a motor, ainda o utiliza como meio de transporte. Sem falar na pesca e nos diversos lazeres praticados no rio ou em torno dele.

Agora eu já estava chegando em Cordisburgo, terra sagrada de todo o rosiano. Mas eu tinha uma última promessa a pagar. Sendo assim, segui adiante e fui almoçar na Linguiça da Bete, simpática cadeia mineira de restaurantes que têm no pão de linguiça o seu carro-chefe. Estive com uma inesquecível turma rosiana ali em outubro de 2019 e prometi à Pimentinha (também conhecida como Debora Lahtermaher) que voltaria para comer um sanduíche carregado na pimenta. Na verdade, havia um comida a peso no forno de lenha bem convidativo e adiei o sanduíche para outro dia.

Para variar, tinha comido demais. Sendo assim, quando cheguei no HC Hotel em Paraopeba, pus algumas coisas no quarto e logo saí para escapar à tentação de tirar uma soneca depois de acordar três minutos antes das três da manhã e dirigir por oito horas.

Paraopeba? Amanhã eu explico o motivo. Por enquanto venham passear comigo por Paraopeba. Paraopeba, como muitas cidades mineiras, surgiu como ponto de apoio aos tropeiros que abasteciam as regiões de mineração. Tabuleiro Grande era um desses pontos ainda no século XVIII, documentos oficiais já mencionam o arraial em 1731. Os moradores viviam da agricultura, da pesca e de alguma mineração. O salto se deu com a construção de uma fábrica de tecidos, a primeira de Minas, na segunda metade do século XIX. Isso foi obra da família Mascarenhas, vinda de Portugal para o Brasil no fim do século anterior (o XVIII). Em Grande sertão: veredas, Mascarenhas é sinônimo de riqueza: “Lampeiro, o Quipes entrado em boas roupas, montado num bom cavalo amarelo, pitando maço de cigarros de fábrica; rico feito um Mascarenhas.” Paraopeba só se tornou município em 1912 com o nome de Vila Paraopeba, encurtado em 1931 para Paraopeba. Atualmente tem 24 mil habitantes e fica a 99 quilômetros de Belo Horizonte.

Não surpreende que a encantadora praça principal da cidade se chame Coronel Caetano Mascarenhas, nome do criador da fábrica de tecidos e que também dá nome à cidade vizinha: Caetanópolis. No livro aparece com o nome antigo: Cedro e a mudança dos nomes é duramente criticada por Riobaldo: “Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.”

O nome Mascarenhas não aparece só na praça central. Está presente também no nome de ruas: avenida José Candido Mascarenhas, rua Agenor Mascarenhas, avenida Antonio Candido Rocha Mascarenhas,  e no nome de escritório de advocacia e contabilidade Ulisses Renato Candido Mascarenhas e Breno Teixeira Candido D. Mascarenhas. Nomes tão grandes que parecem de barões ou condes. O meu gosto prefere o apelativo de outra rua, que conta uma história: Maria Padeira. Devia alimentar o povo com simpatia para ter direito a seu nome na placa sem ser rica e nobre feito uma Mascarenhas.

Uma placa que me espantou dizia: IGREJA SETE ESPÍRITOS DE DEUS. É um verdadeiro Kama Sutra espiritual em que Deus e Jesus aparecem em todas as posições. São tantas igrejas, redondas, quadrangulares, do Sétimo Dia, mas dos sete espíritos? O subtítulo complicava mais ainda “Apostólica, Profética e de Libertação”. Saravá! Havia também símbolos, que eu, pagão de carteirinha irei me eximir de tentar interpretar. Sou apenas um humilde pastor itinerante do Evangelho rosiano dos primeiros dias. Aproveito para lembrar que não tenho cargo, nem autoridade alguma. Se “O sertão: é dentro da gente”, cada um tem que se batizar com o Rosa, de acordo com a sua travessia. Também não vou pedir dízimo, apenas ajuda para expandirmos o rosianismo literário em terras do sertão. Isso, depois, agora voltemos ao passeio por Paraopeba.

A cidade é muito interessante no seu traçado cheio de curvas, ruas secretas que são descobertas apenas se prestando muita atenção e pela sobrevivência de algumas construções mais antigas sobretudo perto da praça do coronel (não quero gastar caracteres falando o nome todo) em frente à igreja matriz rodeada de palmeiras.

Quando cheguei estava ocorrendo a chegada de uma corrida de bicicletas que parece ser a nova febre nacional juntamente com o desvio de recursos do orçamento e a prática de rachadinha pela quadrilha familiar encastelada no Planalto. Vocês já me conhecem: quando vi muita gente reunida fugi que nem uma corujinha buraqueira e fui para a parte mais velha da cidade, onde saberia que não encontraria ninguém.

Na verdade, encontrei seu Ludovino Corcoran, que me contou a história de sua rua e um pouco das lendas da história da cidade, com onça tentando comer coronel subido na árvore, coronel fazendo promessa de erguer a igreja, padre fazendo feitiço e morrendo com a carabina na mão. Também contou a história de um primo que teria roubado a mulher de Juca Bananeira, o amigo de infância de Rosa que é citado em “O Burrinho pedrês”. Segundo seu Corcoran, o Juca teria enviado diversos pistoleiros para matar o Talarico, ladrão de mulher (nome de música de Zeca Pagodinho). Mas o sujeito teria se contrabandeado para o Paraguai. Sem a mulher, que não quis participar dessa confusão toda.

Depois de conversa tão bacana, segui meu caminho, sempre em busca do desconhecido, do inesperado que pode estar na próxima curva, desde que não seja uma onça, porque só faço promessa rosiana e não acredito na salvação divina, apenas na redenção pela beleza literária.

Às vezes o imprevisível é algo que parece banal: uma partida de futebol. Em um belo estádio interiorano, com três degraus de arquibancada, matavam-se ao sol de duas da tarde o “Parceiros FC” (de branco) e o “Buritís FC” (de azul). Escondi minha preferência pelo segundo, um rosiano não poderia deixar de torcer pelos buritís, não é mesmo? Tirei fotos, brinquei com os outros coroas que criticavam cada jogada lançando-lhes feito bomba a frase inesquecível de uma ex-sogra mineira: “Falar é fôlego”. Trinta e seis dias no interior do Brasil e só vi um jogo de futebol em Paraaopeba e uma peladinha de crianças em Urucuia. País do futebol uma ova!

Já estava me dirigindo para a tão a ansiada e creio que merecida soneca. Mas não pude deixar de notar o convite: Floresta Nacional de Paraopeba. É um lindo parque, com uma trilha de oito quilômetros como me informou o guarda, pois aos domingos não abre. Pretendo passear por lá amanhã e arranjar lindas fotos para vocês, prometo.

E por falar em promessa, o que me trouxe a Paraopeba foi uma promessa que fiz ao Rosinha, lágrimas nos olhos (sou chorão, dizem vocês), em 2019. É a última a cumprir nesta viagem tão bafejada pelo sopro da poesia rosiana. Mas isso é segredo e só contarei amanhã, no último dos Diários de Urucuia.

Até lá!

PS: A história de Paraopeba está bem contada no site da cidade por Adriana Andrade – Historiadora e Arquivo da Biblioteca Pública Municipal “Agnaldo Edmundo”.

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