Rosiano que sou, tenho certeza de que é a mão do Rosinha que vai me guiando, disfarçada de acaso, de acidente. Querem uma provinha? Sem eu planejar, não é que o último diário termina em sete? Ao final deste último texto vocês vão entenderão. Por enquanto, peço só um pouco de paciência e confiança nesse guieiro, mesmo sendo carioca e narigudo.
Dormi bem, mas acordei às três e meia da manhã, um menino ansioso no dia de uma viagem para a colônia de férias. Consegui dormir de novo até as cinco e meia e logo desci para tomar um desjejum de rei com suco, frutas, dois tipos de bolo e café livre de impurezas.
Tinha tempo até a mensagem que viria somente depois das nove da manhã. Sendo assim, busquei o que fazer. Primeiro fui ao belo prédio da SEMEC, a Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Paraopeba. Ali a bibliotecária me mostrou uma prateleira só de Rosinha. Bom sinal. Mas agora a única escola de ensino médio de Urucuia também tem pra lá de uma dúzia de exemplares de Grande sertão: veredas graças à generosidade de dezenas de doadores e doadoras que aqui aproveito para agradecer e louvar.
A poucos metros, a entrada para a Floresta Nacional de Paraopeba, quase toda dedicada a espécies do Cerrado. Na entrada, a singela seriedade mineira que sempre me comove: o funcionário anota meus dados, inclusive o motivo de eu estar ali. Não foi em nenhum computador e sim numa modesta prancheta. A floresta, que moradores da cidade chamam de horto, foi criada em 7 de agosto de 1950.
Tem uma área de 200 hectares (grosso modo: 200 campos de futebol), que permitem ao visitante caminhar por uma trilha de oito quilômetros. Muitas espécies têm placas com seus nomes nativos: jatobá da mata, sucupira branca, jacarandá da Bahia, vinhático da mata, canafístula, araticum, rinheiro e gameleira. Também há uma maria preta, mencionada logo nos primeiros parágrafos do livro:
“Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de maria-preta na mão — proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo…”
A floresta é uma mistura de horto e de parque para a população. Tem uma área de lazer que dispõe até de um campinho de futebol, que deve ser adorado pelas crianças. Ao mesmo tempo, serve de local para pesquisas botânicas que trazem pesquisadores de Montes Claros, Viçosa e Belo Horizonte dentre outros locais.
É uma pérola de Cerrado em meio a uma cidade movimentada. Tem um delicioso riacho e caminhos que parecem levar ao céu dos rosianos. Espero que o Rosinha tenha conhecido isso aqui. A paz é tão grande que vi enormes e elaboradas teias de aranha brilhando ao sol. O menino Alvito brincou de pique esconde com um tucano. Eu o fotografava e ele fugia para a árvore mais próxima. Mas não me negou lindas fotos, era um tucaninho maroto e brincalhão.
Nem tudo são flores. Conversando com seu Marcelino, analista ambiental que trabalha há quarenta anos no parque, o quadro que traçou é desolador. Chegaram a ter sessenta funcionários para manter a área, pois há problemas de cupim, formigas e outros. Com a eleição daquele que veio para destruir, confundir e embolsar a rachadinha, a equipe do parque foi reduzida para dez funcionários e a verba foi praticamente cortada. Na verdade, são apenas seis funcionários, já que quatro são porteiros. Há quatro que trabalham para o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e duas moças que limpam, plantam, podam, se desdobram em todos os trabalhos necessários.
Fui para o hotel tomar um banho e esperar a mensagem. Ela veio. Consistia em um mapa de três páginas indicando como chegar à Fazenda das Pindaíbas. Vocês estão a um passo de ouvir a revelação do último segredo e eu estava a alguns de cumprir minha promessa ao Rosinha.
Voltando no tempo, na década de 1920, quando o jovem Guimarães Rosa fez a faculdade de Medicina em Belo Horizonte, além do diploma ganhou um amigo para toda a vida: Pedro Moreira Barbosa. Cresceram muito perto um do outro: Rosa em Cordisburgo, filho de comerciante, Pedro em Paraopeba, nascido em fazenda, mas também sem dinheiro. Não se desgrudaram mais, embora seguindo caminhos diferentes. Depois de um breve período como “médico da roça” em Itaguara, Rosa ingressou no Itamarati e se tornou Guimarães Rosa a partir da publicação de Sagarana em 1946. O amigo, por sua vez, se tornou empresário da indústria da construção civil no Rio de Janeiro. Na década de 1950, retornou a Paraopeba e fundou uma indústria têxtil, da qual Rosa era um acionista sempre preocupado com os dividendos, pois praticamente mantinha toda a sua família. Pedro reteve a propriedade que pertencera a seu pai, a Fazenda das Pindaíbas.
Rosa gostava tanto do amigo que deixou várias cartas em que o chama de “Pedrão”, chegando a apresentá-lo a um colega diplomata como se fosse seu irmão e até pedindo que dispensasse a ele o tratamento que daria a ele mesmo, Guimarães Rosa. Com o amigo Pedro, Rosa desabafava acerca do pesado regime de trabalho, criticava o lado prático da medicina (apalpar, auscultar etc) e até pedia dinheiro emprestado, coisa que Pedro Barbosa nunca negava. E solicitava informações ao amigo sobre histórias e até pessoas da fazenda que Rosa gostaria de transformar em personagens, como o Mechéu, que virou um conto de Tutaméia. Além das cartas, encontrei este registro:
A Gazeta de Paraopeba de 9 de dezembro de 1945, assinala em uma nota social:
“Em companhia do sr. Pedro Moreira Barbosa, está honrando Paraopeba com sua visita o sr. dr. Guimarães Rosa, alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores, residente no Rio.”
A casa de fazenda, branca com janelas azuis de madeira, decerto recebeu a visita do Rosinha várias vezes. Ali há um poço (“piscina”) de água natural vinda do Córrego das Pindaíbas, que passa bem atrás da residência.
Em maio de 1967, seis meses antes da posse na ABL seguida pelo seu encantamento, o Rosinha escreveu uma carta ao amigo falando dos seus problemas de saúde em meio ao excesso de trabalho no setor de demarcação de fronteiras, que Rosa assumira três anos antes. Confessa um desejo: sentar à beira do Poço das Pindaíbas comendo um tutuzinho à mineira ou uma galinha caipira.
Esta foi a última carta que li dele de um acervo depositado nas catacumbas da burocracia museológica sediada em Belo Horizonte. Me emocionei sabendo o que aconteceria dali a seis meses. Imaginei que Rosa nunca pudesse ter alcançado este que deve ter sido um dos seus últimos desejos. Hoje tive a confirmação que ele realmente não voltou à Fazenda das Pindaíbas antes de morrer. Li essa carta em 2019.
Não tirei da cabeça a vontade de ir à Fazenda das Pindaíbas. O Rosinha resolveu o problema. Bárbara Lopes, querida aluna de um dos meus cursos, ficou sabendo da história e mobilizou uma prima para entrar em contato com a família Barbosa.
Assim se deu: entrei em contato com Rogério Cardoso, um neto de Pedro Barbosa que me franqueou, com muita simpatia e generosidade, o acesso à fazenda. Bastava agora eu desvendar o mapa de três páginas que ele me enviara. Vocês, que conhecem a facilidade que tenho para me perder, devem estar a rir, seus mal-agradecidos. Não faz mal. Pessoas que se orientam muito bem chegam apenas aos lugares previstos. Eu, que me perco, faço de cada travessia a descoberta de novos lugares e, às vezes, até chego onde eu quero.
Nesta manhã, entretanto, eu não poderia me perder, teria que achar, de alguma forma a Fazenda das Pindaíbas. Ele me mandou também o telefone do caseiro e da mulher do caseiro. Telefonei para eles, sozinho no deserto buscando um oásis ou, pelo menos, um camelo. Nada: nem telefone, nem mensagem, nada.
Sabia que teria que enfrentar uns dois quilômetros e meio de estrada de terra, coisa que evitei durante toda a viagem para poupar o burrinho. Perguntei a ele se topava encarar a buraqueira. Respondeu que Guimarães Rosa estava no panteão dos muares depois da sua obra-prima “O burrinho pedrês” e que pelo Rosinha iria comigo onde fosse necessário.
Animado pela resposta, me pus a caminho. Coloquei o mapa no Ipad e sentei meu guia eletrônico no banco do carona. As indicações eram do tipo: passar o primeiro mata-burro, depois dobrar à esquerda e atravessar um mata-burro quase escondido, coisas assim. Achei que não tinha chance, minha esperança era o Rosinha. Tomei uma estrada de terra de um quilômetro ao fim da qual eu me vi diante de duas porteiras. Acontece que ambas davam para veredas mortas, isto é: para imensas plantações de eucalipto. Consultei por celular o neto de Pedro Barbosa e ele me disse que era a da esquerda. Fiquei gelado ao entrar em um caminho tapado de eucaliptos dos dois lados. Segui até chegar em um açude e vi até meia-dúzia de buritis. Queria falar a língua deles para perguntar onde era.
Fui salvo pelo filho do caseiro que vinha pela trilha em um moto com a mulher na garupa. Depois soube que não era para ele vir àquela hora. A mão do Rosinha? Fui atrás deles até a Fazenda Pindaíbas. O local é um refúgio belíssimo. Logo divisei a casa antiga e imaginei, na verdade quase vi, o Rosinha sentado na varanda saboreando o barulhinho do Córrego. Visitei e fotografei cada cômodo da casa, cujo interior não foi modificado em termos arquitetônicos. Ficava imaginando em que quarto o Rosinha dormia, qual janela ele abria pela manhã.
Mas isso foi depois. Primeiro eu fui até o lugar onde ainda se pode ver e ouvir o Córrego das Pindaíbas, segundo o caseiro. Fica junto a um exuberante bamburral. Ali, ouvi um som de água correndo, o fluir da vida em sua delicada força. Entendi o que o Rosinha queria, o que ele sentia.
Ali este humilde rosiano cumpriu sua promessa ao mestre. Com carinho, respeito e amor.
P.S: Este diário já estava pronto quando consegui ter uma conversa telefônica com a amabilíssima Dona Samaritana, casada com um filho de Pedro Barbosa. Foi ela que confirmou que Guimarães Rosa não concretizou o desejo da carta de maio de 1967. Ela não conheceu Guimarães Rosa, que o sogro chamava somente de Rosa. Mas adora o autor e tem frases dele nas paredes da casa de sua Fazenda, Pindaíba de baixo. Pedro Moreira Barbosa, segundo ela, era extrovertido, alegre e muito otimista. Ela me deu alguns detalhes sobre a vida de Pedro Barbosa que aproveitei no diário. Seu sogro comentava que Rosa era sujeito sistemático, sempre com as suas manias, voltado para dentro. Pedro falava muito da viagem à Europa que fizeram juntos. Pedro Barbosa foi à posse de Rosa na ABL e ainda no Rio ficou sabendo da morte do seu grande amigo. Continuou próximo de Dona Aracy, que ele apreciava muito. Certamente se apoiaram diante do incompreensível: “Muita coisa importante falta nome.”
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