/FONTES PARA A SALA DE AULA # 018: Casa Grande & Senzala (Trechos)

FONTES PARA A SALA DE AULA # 018: Casa Grande & Senzala (Trechos)

FONTES PARA A SALA DE AULA # 018: Casa Grande & Senzala (Trechos)

Natureza e data do texto: Um dos textos mais polêmicos da nossa história intelectual (ver postagem anterior sobre diferentes avaliações), Casa-Grande e Senzala, lançado em 1933 pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre é uma obra incontornável, que merece ser lida.

p.lvii: “O Professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje a maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia. (…) dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos (…) pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. (…) A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes.
Foi o estudo da Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura. A discriminar entre os efeitos de
p.lviii: relações puramente genéticas e os de influências sociais, de he¬rança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação funda¬mental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família.
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes exagerado nas suas generalizações – principalmente em trabalhos de sectários e fanáticos – temos que admitir influência considerável, embora nem sempre preponderante, da téc¬nica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades; na caracterização da sua fisionomia moral. É uma influência sujeita à reação de outras; porém poderosa como nenhuma na capacidade de aristocratizar ou de democratizar as sociedades, de desenvolver tendências para a poligamia ou a monogamia, para a estratificação ou a mobilidade. Muito do que se supõe, nos es¬tudos ainda tão flutuantes de eugenia e de cacogenia, resultado de traços ou taras hereditárias preponderando sobre outras in-fluências, deve-se antes associar à persistência, através de gera¬ções, de condições econômicas e sociais, favoráveis ou desfavo¬ráveis ao desenvolvimento humano. Lembra Franz Boas que, admitida a possibilidade da eugenia eliminar os elementos indese¬jáveis de uma sociedade, a seleção eugênica deixaria de suprimir as condições sociais responsáveis pelos proletariados miseráveis – gente doente e mal nutrida; e persistindo tais condições sociais, de novo se formariam os mesmos proletariados.’
p.lix: No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica. – a monocultura latifundiária, do outro, pela escassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. O açúcar não só abafou as indústrias demo¬cráticas de pau-brasil e de peles, como esterilizou a terra, numa grande extensão em volta aos engenhos de cana, para os esforços de policultura e de pecuária. E exigiu uma enorme massa de es¬cravos. A criação de gado, com possibilidades de vida democrá¬tica, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária desenvolveu-¬se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, po¬lígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os es¬cravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão.”
p.lx: Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da Africa para o duro trabalho da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternizaçao entre vencedores e ven¬cidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de senhores desa¬busados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de consti¬tuirem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sen¬tido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e ate esposas legitimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil. Entre os filhos mes¬tiços, legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos, subdividiu-se parte considerável das grandes proprieda¬des, quebrando-se assim a força das sesmarias feudais e dos lati¬fúndios de tamanho de reinos.
p.lxi: Ligam-se à monocultura latifundiária males profundos que têm comprometido, através de gerações, a robustez e a eficiência da população brasileira, cuja saúde instável, incerta capacidade de trabalho, apatia, perturbações de crescimento, tantas vezes são atribuídas à miscigenação. Entre outos males, o mau suprimento de víveres frescos, obrigando grande parte da população ao regime de deficiência alimentar caracterizado pelo abuso de peixe seco e da farinha de mandioca (…) A importância da hiponutrição (…) da fome crônica, originada não tanto da redução em quantidade como dos defeitos da qualidade dos alimentos, traz a problemas indistintamente chamados de ‘decadência’ ou ‘inferioridade’ das raças, novos aspectos e, graças a Deus, maiores possibilidades de solução. (…) Não se devem esquecer outras influências sociais que aqui se desenvolveram com o sistema patriarcal e escravocrata de colonização: a sífilis, por exemplo, responsável por tantos dos ‘mulatos doentes’ de que fala Roquette Pinto (…)
A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’ do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização de família, que aqui foi a unidade colonizadora.”
p.lxiii: “A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o ‘tigre’, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos.”
p.lxvii: “A casa-grande venceu no Brasil a Igreja, nos impulsos que esta a princípio manifestou para ser a dona da terra. Vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou dominando a colônia quase sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os vice-reis e os bispos. (…) Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres.”
p.lxxv: “A história social da casa-grande e da senzala é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião de família e influenciado pelas crendices da senzala. (…) Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’ . (…) uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.”
p.lxxxii: “Ensaio de Sociologia genética e de História social, pretendendo fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos mais significativos da formação da família brasileira.”
p.50: “O intercurso sexual entre o conquistador europeu e a mulher índia não foi apenas perturbado pela sífilis e por doenças européias de fácil contágio venéreo: verificou-se – o que depois se tornaria extensivo às relações dos senhores com as escravas negras – em circunstâncias desfavoráveis à mulher. Uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio. O furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo. (…) Isto quanto ao sadismo de homem para mulher – não raro precedido pelo de senhor para muleque. Através da submissão do muleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico. (…) p.51: Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho. (…) abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto.
Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádidos (…) A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de ‘o povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático.”
p.52: “a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. Na verdade o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores a analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia. (…) Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. É verdade que o vácuo entre os dois extremos ainda é enorme; (…) Mas não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical – como diria Sorokin – o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos. (…) a cultura européia se pôs em contato com a indígena, amaciada pelo óleo da mediação africana.”
p.283: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indíge¬na ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que e expressão sin¬cera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as pri¬meiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.”
p.294: “Diante da possibilidade da transmissão de caracteres adquiridos, o meio, pelo seu físico e pela bioquímica, surge-nos com intensa capacidade de afetar a raça, modificando-lhe caracteres mentais que se tem pretendido ligar a somáticos. (…) Admitida (…) a possibilidade de gradualmente, através de gerações, conformar-se o adventício a novo tipo físico, diminui, consideravelmente, a importância atribuída a diferenças hereditárias de caráter mental, entre as várias raças. Diferenças interpretadas como de superioridade e inferioridade e ligadas a traços ou caracteres físicos.”
p.295: “O que se sabe das diferenças da estrutura entre os crânios de brancos e negros não permite generalizações.”
p.296: “Nem merece contradita séria a superstição de ser o negro, pelos seus caracteres somáticos, o tipo de raça mais próximo da incerta forma ancestral do homem cuja anatomia se supõe semelhante à do chimpanzé. Superstição em que se baseia muito do julgamento desfavorável que se faz da capacidade mental do negro. Mas os lábios do macaco são finos como na raça branca e não como na preta – lembra a propósito o Professor Boas. Entre as raças humanas são os europeus e os australianos os mais peludos de corpo e não os negros. De modo que a aproximação quase se reduziria às ventas mais chatas e escancaradas no negro do que no banto.” (…) “O depoimento dos antropólogos revela-nos no negro traços de capacidade mental em nada inferior à das outras raças: ‘considerável iniciativa pessoal, talento de organização, poder de imaginação, aptidão técnica e econômica’, diz-nos o Professor Boas. E outros traços superiores.”
p.297: “Quanto aos testes chamados de inteligência, muitos deles de resultados tão desfavoráveis ao negro, sua técnica tem sofrido restrições sérias. Goldenweiser ridiculariza-os (…) ‘ (…) Quando alguém exprime qualquer bobagem em palavras não há dano nenhum; mas se a exprime em fórmulas matemáticas surge o perigo da roupagem matemática dissimular a bobagem.’ (…) Não se negam diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças representam aptidões inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às circunstâncias econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar.”
p.298: “Lowie parece-nos colocar a questão em seus verdadeiros termos. Como Franz Boas, ele considera o fenômeno das diferenças mentais entre grupos humanos mais do ponto de vista da história cultural e do ambiente de cada um do que da hereditariedade ou do meio geográfico puro.”
p.299: “importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo Islamismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos – portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos a maior parte. (…) O Abade Étienne revela-nos sobre o movimento malê da Bahia em 1935 aspectos que quase identificam essa suposta revolta de escravos com um desabafo ou erupção de cultura adiantada, oprimida por outra, menos nobre. (…) Fosse esse movimento puramente malê ou maometano, ou combinação de vários grupos sob líderes muçulmanos, o certo é que se destaca das simples revoltas de escravos dos tempos coloniais. Merece lugar entre as revoluções libertárias, de sentido religioso, social ou cultural. (…) É que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes.”
p.304: “interessam-nos menos as diferenças de antropologia física (que ao nosso ver não explicam inferioridades ou superioridades humanas, quando transpostas dos termos de hereditariedade de família para os de raça) que as de antropologia cultural e de história social africana.”
p.308: “Diante dos caboclos os negros foram elemento europeizante. Agentes de ligação com os portugueses” (…)
“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos.”
p.315: “parece-nos absurdo julgar a moral do negro no Brasil pela sua influência deletéria como escravo. (…) o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola de malê para vir de tanga, nos [navios] negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de tigre [barril contendo excrementos]. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.
Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos negros da África, como entre os primitivos em geral (…) p.316 é a maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. (…)
Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia. (…)
É um absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. (…)
p.317 é preciso notar que o negro se sifilizou no Brasil. Um ou outro viria já contaminado. A contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais. A ‘raça inferior’, a que se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da ‘superior’ o grande mal venéreo que desde os primeiros tempos de colonização nos degrada e diminui. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito tempo predominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo do que uma negrinha virgem.”

Edição utilizada: FREYRE,Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora:1977. 18.ed.