Natureza e data do texto:
Aqui temos uma sátira deliciosa à rapidez, desfaçatez e oportunismo dos republicanos de última hora. É um pequeno conto de uma antologia de textos escritos entre o fim do século XIX e início do XX. Este, como outros, foi escrito para ser publicado em jornal. Artur Azevedo (1855-1908), irmão de Aluísio Azevedo (autor de O cortiço), foi um teatrólogo (autor de O Tribofe) e jornalista extremamente popular na sua época.
“O VELHO LIMA
O velho Lima, que era empregado – empregado antigo – numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do Comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras.
– Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder!
– Bom dia, comendador.
– Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
– Ora essa! Então por quê?
– A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!…
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
– Como vai você com o Aristides ?
– Que Aristides ?
– O Silveira Lobo.
– Eu! … Onde? … Como? …
– Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior? …
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.
– Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? – perguntou Vidal, passados alguns momentos. – Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!
‘Ora vejam’, refletiu o velho Lima, ‘ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!’
Entretanto, o velho indignou-se, vendo que o delegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.
– Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
– Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
– Não diz coisa com coisa, coitado!
– E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
– Ah, sim… a bandeira… sim… – repetiu o velho Lima para o não contrariar.
– Como a prefere: com ou sem lema?
– Sem lema – respondeu o homem num tom de profundo pesar; – sem lema.
– Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:
– Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!
– Qual Pedro II! – bradou o comendador. – Isso já não é de Pedro II. Ele que se contente com os cinco mil contos!
– E vá para a casa do diabo! – acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.
Chegando à Praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado em arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do Parque da Aclamação…
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
– Cidadão!
‘Deram hoje para me chamar de cidadão!’ – pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
– Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!…
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.
‘Querem ver que já é alguém!’ refletiu o velho Lima.
– Amanhã parto para a Paraíba – disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe a ponta dos dedos. – Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.
E desceu.
– Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!…
Ao entrar na sua repartição, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
– Muito bem! – disse consigo. – Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D.Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:
– Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade?
– Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana ?
– Pedro Banana! – repetiu raivoso o velho Lima.
E sentando-se, pensou com tristeza:
‘Não dou três anos para que isto seja república!'”
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do Comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras.
– Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder!
– Bom dia, comendador.
– Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
– Ora essa! Então por quê?
– A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!…
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
– Como vai você com o Aristides ?
– Que Aristides ?
– O Silveira Lobo.
– Eu! … Onde? … Como? …
– Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior? …
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.
– Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? – perguntou Vidal, passados alguns momentos. – Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!
‘Ora vejam’, refletiu o velho Lima, ‘ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!’
Entretanto, o velho indignou-se, vendo que o delegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.
– Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
– Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
– Não diz coisa com coisa, coitado!
– E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
– Ah, sim… a bandeira… sim… – repetiu o velho Lima para o não contrariar.
– Como a prefere: com ou sem lema?
– Sem lema – respondeu o homem num tom de profundo pesar; – sem lema.
– Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:
– Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!
– Qual Pedro II! – bradou o comendador. – Isso já não é de Pedro II. Ele que se contente com os cinco mil contos!
– E vá para a casa do diabo! – acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.
Chegando à Praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado em arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do Parque da Aclamação…
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
– Cidadão!
‘Deram hoje para me chamar de cidadão!’ – pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
– Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!…
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.
‘Querem ver que já é alguém!’ refletiu o velho Lima.
– Amanhã parto para a Paraíba – disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe a ponta dos dedos. – Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou a seu dispor.
E desceu.
– Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!…
Ao entrar na sua repartição, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
– Muito bem! – disse consigo. – Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D.Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:
– Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade?
– Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana ?
– Pedro Banana! – repetiu raivoso o velho Lima.
E sentando-se, pensou com tristeza:
‘Não dou três anos para que isto seja república!'”
Fonte: AZEVEDO,Artur. Contos escolhidos. São Paulo, O Globo/Klick Editora, 1997. pp. 12-14.
P.S: Ilustração: “Proclamação da República”, de Benedito Calixto, 1893