/FONTES PRIMÁRIAS – A Abolição em romance de Machado de Assis

FONTES PRIMÁRIAS – A Abolição em romance de Machado de Assis

A ABOLIÇÃO EM UM ROMANCE DE MACHADO DE ASSIS

Natureza e data do texto:

Passagens de Memorial de Aires (1908), último livro de Machado de Assis, publicado no mesmo ano da sua morte. O narrador é o mesmo de Esaú e Jacó: o Conselheiro Aires, viúvo sem filhos e diplomata aposentado, um homem equilibrado e sereno, dotado de um fino senso de humor e muita sensibilidade. A escrita tem a forma de um diário (ou quase isso) dos anos de 1888 e 1889. O narrador parece querer distanciar-se das emoções para melhor apreciá-las. Toda a “ação” transcorre em um ambiente aristocrático, entre o Flamengo e Botafogo, onde moram banqueiros, desembargadores, proprietários de terras; o Conselheiro Aires fala até em ir cumprimentar o imperador, o que demonstra sua posição social. São homens e mulheres que vivem em jantares, visitas, passeios, saraus, viagens. A viúva Noronha, a bela e encantadora Fidélia é a personagem central, que acabará por casar-se com o jovem Tristão. Quando do seu primeiro casamento, Fidélia fora execrada pelo pai, um rico fazendeiro do Vale do Paraíba, por ser o noivo de uma família rival. De temperamento forte, o fazendeiro, ao tomar conhecimento da possível libertação dos escravos, reage da seguinte maneira:

p.35

“18 DE FEVEREIRO

Campos disse-me hoje que o irmão [o pai de Fidélia] lhe escrevera, em segredo, ter ouvido na roça o boato de uma lei próxima de abolição. Ele, Campos, não crê que este ministério a faça, e não se espera outro.

24 DE FEVEREIRO

A data de hoje (revolução de 1848) lembra-me a festa de rapazes que tivemos em São Paulo, e um brinde que eu fiz ao grande Lamartine. Ai, viçosos tempos! Eu estava no primeiro ano de Direito. Como falasse disso ao desembargador, disse-me este:

– Meu irmão crê que também aqui a revolução está próxima, e com ela a República”

(…)

10 DE MARÇO

Afinal sempre houve mudança de gabinete. O conselheiro João Alfredo organizou hoje outro. Daqui a três ou quatro dias irei apresentar as minhas felicitações ao novo ministro dos negócios estrangeiros.

20 DE MARÇO

Ao desembargador Campos parece que alguma coisa se fará no sentido da emancipação dos escravos, – um passo adiante, ao menos. Aguiar, que estava presente, disse que nada ocorre na praça nem lhe chegou ao Banco do Sul.

27 DE MARÇO

Santa-Pia chegou da fazenda (…) Parece que ele veio por causa do boato que corre na Paraíba do Sul acerca da emancipação dos escravos.”

(…)

“10 DE ABRIL

Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabê-lo, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do ato. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia a isto, uma vez que condenava a idéia atribuída ao governo de decretar a abolição, e obteve esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as coisas ou nada:

Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim quero e posso.

Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse ato, anterior de algumas semanas ou meses ao outro ? A alguém que lhe fez tal pergunta respondeu Campos que não. ‘Não, disse ele, meu irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelamento que vai lançar às fazendas. O ato que ele resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo por lei.

(…) Não podendo dissuadi-lo o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram ambos a carta de alforria.

Retendo o papel, Santa-Pia disse:

Estou certo de que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer onde nasceram.”

(…)

“19 DE ABRIL

Lá se foi o barão com a alforria de escravos na mala. Talvez tenha ouvido alguma coisa da resolução do governo; dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: ‘Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América…’ Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes.

7 DE MAIO

O ministério apresentou à Câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei.

13 DE MAIO

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na Rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o Paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da Rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao Paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido… Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.

Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia. A Poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde ‘a casa Gonçalves Pereira’ lhe pagou cem ducados por peça.”

Obs: O fazendeiro, afinal, não liberta seus escravos antes do tempo. Após sua morte, sua herdeira, Fidélia, a pedido do segundo marido (talvez preocupado em desfazer a idéia de que se casava de olho na herança), doa toda a fazenda aos ex-escravos, os quais, segundo a narrativa, haviam permanecido na fazenda apenas por amor a ela.