FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 003 – A CRÍTICA NEGRA AO RACISMO EM UM LUNDU RECRIADO EM FORMA DE SAMBA
Natureza e data do texto: Novamente (ver texto anterior), trata-se de dois textos, um tradicional, um lundu da primeira metade do século XIX (TEXTO A) e outro um samba do final do século XX (TEXTO B). Novamente a tradição é apropriada e recriada.
A) Lundu de Pai João (s.XIX): de autoria desconhecida, provavelmente composto no século XIX, após 1837 (pela menção à Casa de Correção), já contém uma crítica à sociedade branca. Alguns versos circulam até hoje, reaproveitados em sambas e rodas de partido alto, como veremos em seguida. Notar que o texto procura dar conta da fala de um africano falando o português, algo próximo à fala de um Preto Velho na Umbanda:
“Quando iô tava na minha tera
Iô chamava capitão
Chega na terra dim baranco
Iô me chama – Pai João
Quando iô tava na minha terá
Comia mia garinha,
Chega na terra dim baranco
Carne seca com farinha.
Quando iô tava na minha tera
Iô chamava generá,
Chega na terra dim baranco
Pega o cêto vai ganhá.
Dizaforo dim baranco
Nó si póri atura
Tá comendo, tá drumindo.
Manda nego trabaiá.
BARANCO DIZE QUANDO MORE
JESUCRISSO QUE LEVOU
E O PRETINHO QUANDO MORE
FOI CACHAÇA QUE MATOU
(…)
Baranco dize – preto fruta,
Preto fruta co rezão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião.
Nosso preto fruta garinha
Fruta saco de fuijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.
Nosso preto quando fruta
Vai pará na coreção,
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão.”
D) Samba de Rubens da Mangueira, gravado por Beth Carvalho no CD “Pérolas do Pagode”, faixa 1 (1998 – Polygram):
“Ô, Isaura
pega na viola
o samba é bom
não vai terminar agora
Lá no Morro de Mangueira
Só não sobe quem não quer
Porque lá tem Tengo-Tengo
Santo Antônio e Chalé
TODO RICO QUANDO MORRE
FOI PORQUE JESUS LEVOU
TODO POBRE QUANDO MORRE
FOI CACHAÇA QUE MATOU.”
Interpretação: Não há a menor dúvida de que o refrão utilizado por Rubens da Mangueira é proveniente do Lundu do Pai João, elaborado mais de 100 anos antes e que deve ter sobrevivido graças à forte tradição oral das comunidades negras que tem na música seu meio principal de transmissão. É importante notar também que negro e branco, no pós-abolição, são substituídos por pobre e rico, como que a afirmar que se a situação mudou do ponto de vista legal, continuou do ponto de vista social. Pois é claro que subentende-se por pobre o negro e por rico o branco. De qualquer forma, o fundamental permanece, a crítica à injustiça e à hipocrisia.
P.S: Ilustração: EARLE, Augustus (1793-1838), “Cena de fandango de negros no Campo de Santana”, c. 1822. Artista inglês que visitou o Brasil duas vezes na primeira metade do século XIX, exatamente o período em que foi criado o Lundu do Pai João. Obtido no site da National Library of Australia, acessado em 27/7/2016.
Como citar: ALVITO, Marcos. “A crítica negra ao racismo em um lundu recriado em forma de samba”. Página do Facebook – Marcos Alvito – Professor, julho/2016. Disponível no link. (acessado em …/…/…).