/FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 006 – Aluisio Azevedo e a invenção da mulata

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 006 – Aluisio Azevedo e a invenção da mulata

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 006 – Aluisio Azevedo e a invenção da mulata

Natureza e data do texto:

O romance naturalista O Cortiço, data de 1890, pouco depois da Abolição e da Proclamação da República. Foi escrito por Aluisio Azevedo, um ferrenho republicano. Serve de documento acerca das preocupações dos intelectuais da época quanto à possibilidade ou não de construir uma nação a partir da mistura de elementos raciais por eles considerados inferiores. Embora a mulata enquanto estereótipo da mulher sensual já estivesse presente nos lundus, é Aluisio de Azevedo quem irá dar-lhe uma forma definitiva e inesquecível. Trata-se de Rita Baiana, a mulata que irá “enfeitiçar” o bom trabalhador Jerônimo e levá-lo à derrocada física e moral. Rita é uma encarnação dos trópicos, com sua força e sua capacidade de degeneração na visão naturalista de Azevedo.

Texto:
VI.
“Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega. (…)

Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos.

Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de pagar o aluguel do cômodo. (…)

E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz, segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo!

Esta última noticia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que “era aquela franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria com a tripa marcha ou com a goela seca!”

VII
(…)
Jerônimo levantou se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro.

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara se nesse momento, envolvendo a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.

Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter se todo, a sumir se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.

O chorado arrastava os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.

E Jerônimo via e escutava, sentindo ir se lhe toda a alma pelos olhos enamorados.

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando lhe os desejos, acordando lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.

Fonte: O Cortiço. Aluísio Azevedo. Capítulos VI e VII.