/FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 008 – Abelardo Leiva, positivista, poeta e revolucionário ma non troppo

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 008 – Abelardo Leiva, positivista, poeta e revolucionário ma non troppo

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 008 – Abelardo Leiva, positivista, poeta e revolucionário ma non troppo

Natureza e data do texto:

Lima Barreto (1881-1922) viveu de acordo com suas convicções e pagou alto preço por isso. Sendo assim, pinta um retrato extremamente irônico daqueles que fingem ser revolucionários, como é o caso desta personagem Abelardo Leiva. São trechos retirados do capítulo VII do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909]. Neste, o autor conta as desventuras de um estudante negro que vem para a capital do país para se formar em Engenharia e acaba trabalhando em um jornal.

“Abelardo Leiva, o meu recente conhecimento, era poeta e revolucionário. Como poeta tinha a mais sincera admiração pela beleza das meninas e senhoras de Botafogo. Não faltava às regatas, às quermesses, às tômbolas [bingo], a todos os lugares em que elas apareciam em massa; e a sua musa – uma pálida musa, decentemente abotoada no Castilho e penteada diante dos espelhos de B.Lopes e Macedo Papança – quase diariamente lhe cantava a beleza ‘olímpica e lirial’. Como revolucionário, dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas prédicas e brochuras do Senhor Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre duas refeições afastadas, as suas obras prediletas e enchendo a cidade com os longos passos de homem de grandes pernas. (…)

À tarde, encontrávamo-nos e íamos conversar a um café com alguns outros amigos dele, na mor parte desprovidos de dinheiro, com magros e humildes empregos, pretendendo virar a face do mundo para ter almoço e jantar diariamente. Leiva era o chefe, era a inteligência do grupo, pois, além de poeta, tinha todos os preparatórios para o curso de dentista. Eu gostava de notar a adoração pela violência que as suas almas pacificas tinham, e a facilidade com que explicavam tudo e apresentavam remédios. Embora mais moço que eles, várias vezes cheguei a sorrir aos seus entusiasmos. Creio que lhes não faltava inteligência, sinceridade também; o que não encontravam era uma soma de necessidades a que viessem responder e sobre as quais apoiassem as suas furiosas declamações. Insurgiam se contra o seu estado particular, oriundo talvez mais de suas qualidades de caráter do que de falhas de temperamento. Eram todos honestos, orgulhosos, independentes e isso não leva ninguém à riqueza e à abastança. Leiva era quem mais exagerava nos traços do caráter comum e se encarregava de pintar os sofrimentos da massa humana. Era um grupo de protestantes, detestando a política, dando se ares de trabalhar para obra maior, a quem as periódicas “revoluções” não serviam. Um ou outro acontecimento vinha lhes dar a ilusão de que eram guias da opinião. Leiva gabava se de ter feito duas greves e de ter modificado as opiniões do operariado do Bangu com as suas conferências aplaudidas. Os outros, sem a sua enfibratura, os seus rompantes de atrevimento e a sua ambição oculta, mais sinceros talvez por isso, limitavam se a falar e a manifestar as suas terríveis opiniões em publicações pouco lidas.

No entanto, Leiva parecia me mais sincero na sua poesia palaciana e de modista do que nas idéias revolucionárias. Não o julgava perfeitamente hipócrita; era a sua situação que lhe determinava aquelas opiniões; o seu fundo era cético e amoroso das comodidades que a riqueza dá. Cessassem as suas dificuldades, elas desapareceriam e surgiria então o verdadeiro Leiva, indiferente aos destinos da turba, dando uma esmola em dia de mau humor e preocupado com uma ruga no fraque novo que viera do alfaiate.”