/FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 010 – A República dos Doutores segundo Lima Barreto

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 010 – A República dos Doutores segundo Lima Barreto

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 010 – A República dos Doutores segundo Lima Barreto

Natureza e data do texto:
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909, é o mais autobiográfico dos romances de Lima Barreto. Nele, um jovem mulato, vindo do interior, vem para a capital estudar mas fracassa e termina sua vida como um burocrata. Nesta passagem, Isaías sonha acordado, cheio de esperanças de se tornar um doutor. Isso permite a Lima Barreto ironizar o poder e o sentimento de superioridade dos bacharéis durante a Primeira República. Um texto ainda atual…

“A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim de ano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seria doutor !
Ah ! Seria doutor ! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício presente, cruciante e onímodo de minha cor… Nas dobras do pergaminho da carta*, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.
(…)
Ah! Doutor! Doutor!… Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos… Era um pallium** [manto usado pelos gregos antigos], era alguma coisa como clâmide [tipo de capote usado pelos antigos gregos] sagrada tecida com fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou ? Como está, doutor ? Era sobre-humano !…” (…)
“Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. Pus-me a considerar que isso devia ser antigo… Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido doutores!
Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extra-terrestre… Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no mundo é propriedade do doutor, e se alguma coisa outros homens gozam, devem-no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para a qual eu entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros – tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum.”

– Levas toda a roupa, Isaías ? Veio interromper minha mãe.
Eu estava deitado num velho sofá amplo. Lá fora, a chuva caía com redobrado vigor e ventava fortemente. A nossa casa frágil parecia que, de um momento para outro, ia ser arrastada. Minha mãe ia e vinha de um quarto próximo; removia baús, arcas; cosia, futicava. Eu devaneava e ia-lhe vendo o perfil esquálido, o corpo magro, premido de trabalhos, as faces cavadas, com os maxilares salientes, tendo pela pele parda manchas escuras, como se fossem de fumaça entranhadas.” (…) “Aos seus olhos – muitas vezes se me veio a afigurar – eu era como uma rapariga, do meu nascimento e condição, extraordinariamente bonita, vivaz e perturbadora… Seria demais tudo isso; cercá-la-ia logo o ambiente de sedução e corrupção, e havia de acabar por aí, por essas ruas…”
p.28 “- Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!… E não te mostres muito, porque nós…”
* Carta: Diploma; documento oficial, que atribui a alguém um cargo ou título, ou um privilégio. (N.E.)
** Pallium: Forma latina de pálio, manto usado pelos gregos antigos. (N.E.)

Fonte: Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], cap. I