/FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 012: A favela como questão de polícia

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 012: A favela como questão de polícia

FONTES PRIMÁRIAS PARA A SALA DE AULA 012: A favela como questão de polícia

Natureza e data do texto: desde o seu surgimento na última década do XIX, as favelas despertaram a atenção das autoridades, sobretudo policiais. Aqui temos um documento datado de 1900 que já fala na retirada dos moradores de maneira forçada e registra uma série de preconceitos. O documento e a análise estão na introdução do livro Um Século de Favela, organizado por Marcos Alvito e Alba Zaluar.

“Do dualismo que persiste em muitas das interpretações atuais a respeito das favelas, o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, guarda um interessante documento datado de 4 de novembro de 1900. Trata-se de uma carta do delegado da 10ª circunscrição ao Chefe de Polícia, Dr. Eneas Galvão. Nela podemos ler:

“Obedecendo ao pedido de informações que V.Excia., em ofício sob nº 7071, ontem me dirigiu relativamente a uma local do ‘Jornal do Brasil’, que diz estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias no local designado, se bem que não haja famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do exército, não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em todo o morro um só bico de gás, de modo que para a completa extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco, que para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de oitenta praças completamente armadas.”

A proposta do cerco, prossegue o delegado, nem ao menos era inédita:

“Dos livros desta delegacia consta ter ali sido feita uma diligência pelo meu antecessor que teve êxito, sendo com um contingente de cinqüenta praças, capturado, numa só noite, cerca de noventa e dois indivíduos perigosos. “

A solução ideal, entretanto, era outra, sugere o delegado ao Chefe de Polícia:

“Parece, entretanto, que o meio mais pratico de ficar completamente limpo o aludido morro é ser pela Diretoria de Saúde Pública ordenada a demolição de todos os pardieiros que em tal sítio se encontram, pois são edificados sem a respectiva licença municipal e não têm as devidas condições higiênicas.

Saúde e fraternidade
O delegado”
A carta do delegado foi encaminhada a um assessor do Chefe de Polícia, acompanhada do seguinte parecer, datado de 8 de novembro de 1900:

“Parece-me que ao Sr. Prefeito devem ser pedidas, a bem da ordem e moralidade públicas, as providências que julgar necessárias para a extinção dos casebres e pardieiros a que alude o delegado.”

Dois dias, depois, com um lacônico “Sim”, o Dr. Eneas Galvão, Chefe de Polícia do Distrito Federal, endossava o parecer de seu assessor. Aqui perdemos o fio da meada histórica e não sabemos se jamais o prefeito veio a receber tal correspondência. De qualquer forma, os dois documentos existentes no Arquivo Nacional são importantes por dois motivos. Em primeiro lugar, mostram que o “morro da Favella”, apenas três anos depois do Ministério da Guerra permitir que ali viessem a se alojar os veteranos da campanha de Canudos (terminada em 1º de outubro de 1897), já era percebido pelas autoridades policiais como um “foco de desertores, ladrões e praças do exército”. E mais, a carta do delegado da 10ª circunscrição parece conter a primeira menção à favela como um duplo problema: sanitário e policial (aos quais o assessor de Eneas Galvão acrescentou a “moralidade pública”), que poderia, por isso mesmo, ser resolvido de um só golpe. A idéia da favela como um “foco”, a menção à “limpeza”, isto é, a retórica centrada nas concepções de uma “patologia social” e da “poluição” estava destinada a uma longa permanência na cena institucional carioca do século XX. A proposta de cercar um morro habitado pelas “classes perigosas”, entretanto, não era nova (como os registros da 10ª delegacia assinalavam) e nem parecia ser fruto único e exclusivo da mente das autoridades policiais. Assim podemos depreender de uma notícia publicada também no “Jornal do Brasil”, na famosa coluna “Queixas do Povo”, ainda no mês de novembro de 1900:

“Diversos caixeiros de lojas de fazendas da rua da Carioca vieram pedir que reclamássemos do sr. delegado da 6ª circunscrição urbana as providências contra uma quadrilha de menores gatunos que se acouta no morro de Santo Antônio, perto da passagem dos bonds elétricos.
Anteontem à noite, um desses larápios, auxiliado por um grupo de companheiros, furtou da casa nº 39 daquela rua um par de calças que estava à mostra.”

A relativa insignificância do objeto furtado, entretanto, não parece ter impedido uma reação imediata e coletiva dos comerciantes daquela rua, denotando, talvez, a freqüência do problema:

“Perseguidos pelos reclamantes referidos, evadiram-se por aquele morro, sendo presos somente dois, por um guarda noturno; os outros, antes de fugirem à polícia, juraram aos seus perseguidores vingarem-se deles.”

A providência solicitada pelos comerciantes à autoridade policial é a seguinte:

“Um cerco bem dado, estudando o sr. delegado antecipadamente o terreno do morro, teria bom resultado”.

Extraído da Introdução do livro Um século de favela. Organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito. Rio de Janeiro, FGV, 1998.