/MATERIAIS PARA A SALA DE AULA 02 – A FESTA DA ABOLIÇÃO COMO ARMA POLÍTICA

MATERIAIS PARA A SALA DE AULA 02 – A FESTA DA ABOLIÇÃO COMO ARMA POLÍTICA

A FESTA DA ABOLIÇÃO COMO ARMA POLÍTICA

NATUREZA E DATA DO TEXTO: Belo artigo do historiador Eduardo Silva quando dos 110 anos do 13 de maio de 1888, mostrando a adesão popular à Abolição e o uso da festa como arma de pressão política.

“… porque só vemos a lei, estamos perdendo a festa. A maior festa de todos os tempos. 
E não perdemos apenas a alegria do povo. Perdemos o próprio Brasil, a sociedade concreta. Perdemos sobretudo a participação do povo negro (os pretos e pardos do tempo do Dom Obá II d’África) na construção da história. Na verdade, o que parece extraordinário no 13 de Maio é o fato de não tratar-se apenas do dia da lei, mas do início da festa. Lei e festa completando o sentido uma da outra, de tal modo que podem ser vistas como um todo. A lei inspirando a festa, a festa justificando e garantindo a lei. E não é preciso lembrar o contraponto tristíssimo do tráfico negreiro, que foi abolido no dia 13 de março de 1830 e levou mais de 20 anos para acontecer de verdade, ainda assim com uma lei de reforço, a de 1850.
Em 1888, contudo, o povão parecia muito mais avisado e não deixou o negócio passar despercebido. A lei foi sustentada nas ruas com firmeza jamais vista em nenhum outro episódio da história do Brasil. O apoio era total, alegre, contagiante. E a festa rolou dia e noite, e debaixo de muita chuva, por oito dias seguidos. Nunca se viu tanta alegria. Já no domingo, dia 13, no Largo do Paço, uma multidão de mais de dez mil pessoas – gente como nunca se viu antes – esperava pela assinatura da lei. Bandas de música tocavam, o povo negro cercou o palácio dançando, cantando, dando vivas à liberdade, à princesa, a José do Patrocínio. Desde que a lei saiu do Senado, o povo simples – escravos, libertos e homens livres – fez questão de enfeitar o chapéu ou o peito da camisa com uma folha de ‘independência’ – Sanchesia nobilis, da família das acanthacae-, um arbusto de folhagem verde e amarela, que na tradição popular, desde 1822, passou a significar amor ao país e apoio à sua desvinculação de Portugal. Alguns agitavam ramos de independência, deixando os jardins da cidade depauperados.
Lima Barreto, então um menino de 7 anos, também foi para o Largo do Paço, de mãos dadas com o pai, esperar pela assinatura da lei. A cena o marcaria para sempre, sobretudo o clima geral de expectativa e a primeira explosão da liberdade. ‘Jamais, na minha vida, vi tanta alegria’, recordava ele já adulto. E especificava, ‘era geral, era total’.
A dança, o canto, a alegria do povo, firme, dia e noite, é um fato histórico notável, confirmado por todas as fontes que conhecemos. Todos os jornais, por exemplo, mesmo os estrangeiros, falam de oito dias de ‘riso festivo’, ‘contentamento inexprimível’, ‘constante delírio’, ‘verdadeiro delírio de alegria e entusiasmo’ e por aí afora, sem nada destoante.
A alegria parou a cidade. As repartições públicas, o porto, os trens de carga, os correios, os bancos, tudo foi obrigado a parar para ver a festa, até a fadiga mais completa, que só baixou no dia 20. Aqui, ali, por toda parte, o povo foi tomando conta da festa. Já no anoitecer do dia 17, conforme o entusiasmo foi esquentando, a alegria subiu à cabeça dos músicos do 7º Batalhão Naval, que, simplesmente, resolvem afrouxar a rigidez do repertório – polcas, valsas e marchas triunfais -, para atacar por baixo, com ritmos mais animados, improvisando-se um autêntico samba-de-roda, pela primeira vez, em plena rua do Ouvidor, o centro chic do Brasil. Isso para escândalo da burguesia, que chegou a reclamar aos jornais, cheia de dedos com a ‘indisciplina’ e com aquelas músicas ‘feitas de requebros’, ‘para se ouvir com as pernas em vez de se ouvir com os ouvidos’. A iniciativa dos soldados, contudo, lavou a alma deles mesmos e do resto do povão, que tomou conta do pedaço e festejou à larga, se acabando no miudinho até não poder mais. No dia seguinte, também a banda dos Meninos Desvalidos introduziu grande variação, com seus ‘requebrados tangos’, de novo para prazer e glória de Zé-Povinho.
Nunca o Rio de Janeiro enfeitou-se tanto. Por toda parte era uma exuberância de flores, bandeirinhas, lanternas venezianas e luzes de todo o tipo. De dia eram passeatas; de noite, as marches aux flambeaux, ambas intermináveis, como uma serpente entrando e saindo pelas ruas estreitas em busca de certos pontos estratégicos, como a Rua do Ouvidor, onde estavam os principais jornais, e as casas de gente importante, sobretudo ministros de Estado, como que para comprometê-los com a irreversibilidade do mundo novo. E eram os estudantes de Medicina, com o seu garboso estandarte, os operários do Arsenal de Guerra, o Congresso Acadêmico, os alunos do Instituto dos Meninos Cegos, o pessoal dos Correios, com sua famosa banda de música, dirigida pelos carteiros Sampaio e Luiz José, e era o povão indistinto, firme na batucada. Todo Ministro foi visitado e revisitado. Alguns, a princípio, ficavam assustados com aquela alegria transbordante a cercar-lhes as residências. Outros podiam não estar ainda inteiramente à vontade com as novas idéias, status e relações que se impunham. Mas, gostassem ou não, tinham que responder aos vivas e aos discursos, além de contribuir com as empadinhas e a cervejota.
Na verdade, na cidade do Rio de Janeiro – e daí para todo o Brasil -, se alguém não estava gostando da conquista do 13 de Maio, esse alguém teve que ficar calado por muito tempo. Creio mesmo que para sempre, tal o impacto da grande festa.”

FONTE: Eduardo Silva, “Qual Abolição ?”, Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 9/5/98.

Imagem: Charge de Angelo Agostini na Revista Ilustrada em 1888. Ex-escravos dançam em torno de fogueira feita com instrumentos de tortura.