- Zou Negão, pareces, mas não és não…
Zou Negão era tomado por sentimentos contraditórios enquanto participava daquela reunião visando achar um meio para destruir o nome de Eukali. Primeiro, porque ele sabia ser tudo mentira da grossa e ainda tinha certos pudores, por incrível que pareça. Por outro e talvez, mais importante, porque tinha saudades daquela sararazinha… Machucava seu coração vê-la se atracando com os branquelos, para todo lugar que ele ia acabava vendo ela de beijinhos e abraços – como era carinhosa a doce Eukali – parecia até que ela fazia de propósito.No momento, esta tristeza só era suplantada pelo temor de que Eukali revelasse seus piores segredos, aqueles que repartira com ela em um momento tão romântico e especial que ele perdera até a vontade de continuar mentindo. Ela sabia que ele não era 100% negro, havia pelo menos duas manchas brancas na família, um bisavô italiano pelo lado materno e, o que era bem pior, seu próprio pai. Sim, o seu próprio pai, gaúcho e torcedor do Grêmio ainda por cima… Este era um segredo guardado a sete chaves, melhor trancado do que os laboratórios ou as celas de aula. Se isto viesse a luz, nem seus brothers mais fiéis iriam perdoá-lo. Ainda bem que seu pai havia voltado para a colônia alemã de onde viera, no interiorzão do Rio Grande do Sul, depois de se separar da sua mãe. Zou Negão, por sorte, não saíra que nem seus dois irmãos, meio café com leite, a marca da desonra na pele. Por um milagre, viera carregado na cor, a olho nu ninguém duvidava da sua negritude. Mas se Eukali desse com a boca… ai, só de pensar na boquinha da Eukali…
E havia ainda um outro podre, desse ninguém sabia, nem sua ex-namorada, agora intitulada por ele de “A Alegria da Branquelândia”. Ele dizia que morava numa favela ainda sem água, luz e UPP, Unidade dá Porrada em Preto. Na verdade, morava em uma casa confortável em Santa Teresa. Sua mãe, que ele dizia a todos ainda trabalhar ralando de empregada na casa das madames de Copacabana, era formada em Administração e até dona de uma pequena empresa de Contabilidade. Ele sempre havia estudado em escola particular. E havia passado no vestibular da UFFa com ótimas notas, só se inscrevera no sistema de cotas para não dar na pinta.
ZouZou era um negão de butique, que vivia criticando os seus conhecidos do Sou Negão sem preconceito, os caras viviam tocando samba, alegres, atacando o racismo com ironia e arte… Zou Negão os chamava de alienados, pretos sem consciência da raça e coisas deste naipe. Mas a verdade é que não sabia bater um tamborim, acompanhar um samba na palma da mão, o negócio dele era jazz fusion…
Agora ele estava intrigado com o silêncio de Eukali. Se fosse ele, já teria colocado a boca no trombone, maneira de dizer que ele era macho alfa. Mas no lugar dela já teria jogado os podres dele no ventilador e espalhado pelo Cancrus afora… Será que ela ainda nutria algum sentimento por ele? Apesar dele ter sido tão canalha? Por falar em canalha, nessa hora ele até lembrava de uma das duas ou três aulas que assistira com o Al Tivo, antes de se retirar bombasticamente diante da afirmativa absurda de que só há uma raça, a raça humana (e não é das melhores). Aquele dinossauro branquelo vivia dizendo que era preciso ter gingado dialético, nada é tão simples assim, a vida não é tese de dor-tourado, onde está tudo esquematizado, a tinta negra na folha branca dando conta de tudo. O que restava por explicar era sempre o mais importante. Ali onde parecia não haver lógica era tão simplesmente o espaço onde a lógica era outra, a lógica maussiana do vínculo das almas, a lógica da dádiva, da amizade, do amor. Porra, como era piegas aquele velho decadente. Tava na hora dele morrer ou pelo menos se aposentar e ir cuidar das flores dele, vivia falando isso, dizia ser de um poeta português, tinha que ser, logo português, raça de mercadores de escravos. Mas mesmo assim, como explicar que Eukali não reagisse na mesma moeda? Como é que ela não rezava pela cartilha do olho por olho, dente por dente?
Mas logo foi despertado desse torpor melancólico por um dos seus asseclas:
– ZouZou, tamos saindo pra pichar o Cancrus todo, não vai sobrar uma parede branca sem o nome da Eukali sendo esculachado nela…
– Demorô…
O que será que ZouZou, Stalinho e seu grupinho pichariam nos muros da perversidade? E olha que nunca faltou muro…
Tudo isso e mais alguma coisa (sou que nem político ou membro de chata, prometo sem parar)
nas próximas histórias do seu, do nosso, do vosso sensacional folhetim eletrônico-foicebukiano:
As aventuras da Dra. Eu Ka Liptus…
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OBSERVAÇÃO: Esta é uma obra FICCIONAL, inspirada em processos realmente existentes, mas não em pessoas. Semelhanças com pessoas reais são apenas coincidência, sem dúvida fruto da frequência com que determinadas coisas ocorrem nos ambientes retratados.