9. OS SEGREDOS DE EU KA LIPTUS
Depois que deixou o sapo intanha de barba de papoula, quer dizer, o Pós-Doutor Kur Aka prostrado no leito, tomado pelo relaxamento pós-orgásmico de tipo C (um dia explico isso), Eu Ka Liptus se viu tomada por um breve sentimento de desespero. Daqueles do tipo: onde estou, que estou fazendo, como é que vim parar aqui?
Foi aí que veio aquela memória dos seus treze anos, ela lembrava bem da idade porque seu corpo ia marcando o tempo: quando os peitinhos começaram a apontar, quando viu a calcinha cheia de sangue e, claro, quando foi penetrada pela primeira vez. Infelizmente, não foi nessa ordem. Esse era o primeiro grande segredo de Eu Ka Liptus. Ela, que sonhava com aqueles 10 minutinhos de glória no programa da Ana Maria Praga, ensinando aos telespectadores, em sua maioria mulheres, a como ter uma vida sexual feliz; ela, hoje sexóloga respeitada da Universidade do Acre até a Federal do Rio Grande do Sul, tivera uma iniciação sexual trágica. Podemos dizer até brutal. Podemos dizer até criminosa. Podemos e devemos.
Kalizinha morava na favela do Uru Bu. Pois naquele tempo ainda não se conhecia a expressão politicamente correta comunidade, muito menos “carente”). Na verdade, ela só foi aprender que morava na favela quando foi à escola pela primeira vez. Ali os coleguinhas que moravam no conjunto habitacional vizinho, gabando-se de ser “asfaltados”, chamavam todo e qualquer Uru Buense pela expressão latina: “seu favelado sujo e ladrão”, quando não acompanhada do provérbio chinês: “favelado bom é favelado morto”. Os asfaltados mais radicais do conjunto Mãe Ratan, invocavam até mesmo a famosa máxima conhecida em todo o bairro: “a solução pro Uru Bu é querosene e fósforo”.
Kalizinha não sabia que era favelada, muito menos que era suja, “ladrona” e, é claro, safada. Nem tampouco que era mulata sarará e que aqueles cachinhos castanho claro carregavam neles as contradições da mundialmente famosa democracia racial de Kud Omundo. Mas ela teve que aprender rápido. Mal os seus peitinhos começaram a apontar para o céu e os meninos, todos eles, inclusive os ex-amigos de infância, já tavam falando, sussurrando e às vezes quase gritando:
– Novinha gostosa, quero meter no seu buraquinho… sua putinha sem vergonha, favelada imunda
Kalizinha pirou na batatinha.. Sua mãe nunca tivera coragem de dizer a ela o que iria acontecer. Olhava para o lado e via colegas tão assustadas quanto ela… Todo mundo via aquele cerco, aquela perseguição, aquela violência sem par, cotidiana, incessante, aterradora. Muitas vezes a Dra. Eu Ka Liptus, em seu laboratório com ar condicionado, tinha refletido sobre os desvãos da natureza humana. Tudo só por causa de um par de mamilos proeminentes?
E lhe vinham à mente as aulas de Adri Me Vacina, a famosa sexóloga feminista da Aka Epi Demia. Todos sabiam que a palavra feminista era uma espécie de maldição. Pronunciá-la era quase um xingamento. Tudo quanto é macho se sentia ameaçado. No inconsciente uma feminista era uma mulher bigoduda, sapatona, com uma foice na mão para cortar seus bagos. De nada adiantava Adri Me Vacina alertar que o machismo oprimia também os homens, que morriam de medo de ser viados, motivo pelo qual descarregavam o ódio naqueles que assumiam sua homossexualidade. Porrada nesses viados que gostam de dar o rabo pra gente.
Adri Me Vacina era uma esfinge que eles não conseguiam decifrar. A desgraçada era feminina e feminista, era acadêmica rigorosa e gostava de funk e das expressões culturais da favela. Só tinha um calcanhar de Aquiles, ou de Helena, por assim dizer: apesar de ser filha de nordestino, era branca, tinha olhos verdes e professora universitária. Não era preta, tinha cabelo liso, morava em Vila Isabel. Claro que só podia ser uma exploradora de favelados. Era o único jeito de atacá-la. A doce Eukali ficou fascinada com o pensamento de Adri, mas não quis entrar no Núcleo de Estudos E.H.N.F.E.P.D.D.P.E.E.T.M.D.S.V. Sigla que significava, Ei Homem Não fique Assustado, Pare de Dar Porrada em Mulher e ter medo de ser Viado. Se Eukali entrasse naquele núcleo, adeus carreira acadêmica.
Mas como não lembrar da Me Vacina quando ela, doutoura Ka Liptus, recordava o dia em que os meninos da sala, favelados e asfaltados, haviam cercado a novinha bem quando ela atravessava aquele trecho deserto da estrada Odiabo Desistiu Debuscarasbotas. Eram uns vinte. Foi um de cada vez, com os outros olhando e lambendo os beiços. Naquela hora Kalizinha morreu, foi ao Inferno e voltou em três dias ou, melhor, em duas semanas. Tempo necessário para não aparecer no colégio com as marcas de tanta porrada que levou. Que eles avisaram: se contar morre de morte matada, sem falar que a gente vai te esrtrupar (o que importa a ortografia nessa hora?) tudo de novo, com mais vontade ainda.
Foi aí que ela decidiu dedicar a sua vida a tentar entender como pode haver sexo sem amor e de onde vem tanta violência, tanto ódio. Conseguiu levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Entrou na faculdade de sexologia e logo foi batizada, como vimos, de “a doce Eukali”. Mas com ela guardava um grande segredo e não era aquele do “amor coletivo”, era outro, só dela, que eu não sou bobo de revelar aqui e agora porque ainda faltam 60 histórias e eu preciso de um pouquinho de suspense…
Mas então o que é que ela estava fazendo com aquele canudo plastificado na mão?
Foi despertada de suas reflexões pelo grande, bota grande nisso, Kur Aka, que mesmo zonzo, lhe pediu um último “favor”:
– Por acaso você ainda tem o telefone da Michelle?
xxxy xxxx xyxy xx xy xxxyxxxyxx xyxxxyxxxyxxxyxxxyxx xx xyxyxy xxxy xxxx
(Poema concreto escrito pela doce Eucali no segundo ano de sexologia na UFFa, rs)
———————————————————————————-
OBSERVAÇÃO: Esta é uma obra FICCIONAL, inspirada em processos realmente existentes, mas não em pessoas. Semelhanças com pessoas reais são apenas coincidência, sem dúvida fruto da frequência com que determinadas coisas ocorrem nos ambientes retratados.