- A favela não vai abaixo
Sinhô adorava o Morro da Favela, onde ele dizia ter tirado seu “curso de malandragem”. Em fins da década de 1920 é contratado um urbanista francês que traça um plano de remodelação da cidade do Rio de Janeiro que, entre outras coisas, previa a expulsão dos moradores da favela, a serem substituídos por funcionários públicos, pequenos empregados do comércio e outros. Sinhô revidou exaltando o Morro da Favela em seu famoso samba de 1928, “A favela vai abaixo”. É um diálogo fictício entre um seresteiro e uma mulata.
Começa com o seresteiro anunciando o fim da favela e a dor da perda do lugar onde eles se amaram:
Seresteiro
Minha cabocla, a Favela vai abaixo!
Quanta saudade tu terás deste torrão
Da casinha pequenina de madeira
Que nos enche de carinho o coração!
A mulata continua no mesmo tom, acrescentando a dimensão do sagrado:
Mulata
Que saudade a nos lembrarmos das promessas
Que fizemos constantemente na capela
Pra que Deus
Nunca deixe de olhar
Pra nós da malandragem
E pelo Morro da Favela
E prossegue criticando as autoridades e a sociedade branca por aquela violência:
Vê agora a ingratidão da Humanidade
E o poder da flor sumítica amarela
Que sem brilho
Vive pela cidade
Impondo o desabrigo
Ao nosso povo da Favela
O seresteiro detalha o que vai acontecer, serão obrigados a ir para longe:
Seresteiro
Minha cabocla, a Favela vai abaixo!
Arruma as trouxa
Vamo embora pro Bangu
Buraco Quente, adeus pra sempre
Meu Buraco
Eu só te esqueço no buraco do Caju
E a mulata explica a razão daquilo tudo, a inveja de quem não conhece o samba nem pode apreciar a lua do alto do morro:
Mulata
Isso deve ser despeito dessa gente
Porque o samba não se passa para ela
Porque lá o luar é diferente
Não é como o luar
Que se vê dessa favela
No Estácio, Querosene ou no Salgueiro
Meu mulato não te espero na janela
Vou morar na Cidade Nova
Pra voltar meu coração para o morro da Favela!
Uma das primeiras músicas sobre a favela, “A favela vai abaixo” é um documento histórico que mostra como as camadas populares tinham no samba uma arma para combater os preconceitos e as arbitrariedades. Diante da visão da sociedade branca de que a favela seria reduto de marginais, Sinhô contrapõe a imagem de um lugar onde vidas eram vividas, com seus amores, alegrias e tristezas. E mais, um lugar de arte e beleza, que se não era o berço, era um habitat natural do samba.
Detalhe: a favela acabou não indo abaixo, muito pelo contrário, resistiu e multiplicou sua presença na paisagem do Rio de Janeiro.