HOMENAGEM A DONA IVONE LARA (trechos do inédito Histórias do samba 2)
Dona Ivone Lara nasceu em 1921. Seu pai tocava violão 7 cordas. Sua mãe tinha uma voz belíssima e era crooner do rancho Flor de Abacate. Apesar de ligada à música, Dona Emerentina não deixava a filha ir ao samba no Morro do Salgueiro. Rancho era uma coisa, roda de samba no morro era outra. Os ranchos tinham muito mais prestígio, eram “respeitáveis” e bem aceitos pela sociedade. Ainda na década de 1920 uma família negra não permitia que sua filha freqüentasse uma batucada no morro.
Resultado: a pequena Ivone dava suas escapadas até o morro para assistir às rodas de samba do Terreiro Grande sem a mãe saber. Só que a menina, encantada com o que ouvira, quando chegava em casa acabava cantarolando um ou outro samba que aprendera no Salgueiro. Resultado: a mãe descobria que ela fora se meter com quem não devia e a menina Ivone levava uma surra.
Este primeiro contato da menina Ivone com o samba acaba sendo paradigmático porque ela teve que nadar contra a corrente e enfrentar muitos preconceitos até tornar-se o que se tornou: a rainha do samba. A história da sua primeira composição é muito bonita: órfã de mãe e vivendo em um colégio interno, a pequena Ivone jamais ganhara uma boneca. Chegou a ficar dois anos sem receber nenhuma visita e sem sair da escola. Mas seu primo Fuleiro (que depois viria a ser o famoso Mestre Fuleiro) lhe dá um passarinho, um Tiê. Apegada ao bichinho, Ivone começa a fazer versos para ele. Sua primeira composição, em parceria com o primo e com Hélio (Campolino) é para o pássaro que representava para ela “carinho, amor e paixão”. Ela tinha 12 anos apenas.
O samba reserva determinados lugares às mulheres: organizam as festas, são pastoras, cabrochas, costureiras, baianas e muitas coisas. Mas raramente as mulheres são compositoras. Claro que temos exceções: Janet de Almeida, Jovelina Pérola Negra, mais recentemente Teresa Cristina e algumas poucas outras. Mas no seu tempo Dona Ivone Lara teve que abrir o caminho sozinha, foi uma das pioneiras neste sentido. Antes de se casar, morou um tempo com uma tia em Madureira. A tia não gostava de samba, para ela “coisa de gente desocupada”. O jeito que Ivone encontrou para não desagradar à tia foi no mínimo original. Passava as composições para seu primo, Mestre Fuleiro, que as apresentava nas quadras das escolas de samba como se fossem suas. Sem dúvida isto nos lembra algumas escritoras do século XIX, obrigadas a escreverem com pseudônimos masculinos, como a baronesa Amandinhe Lucile Aurore Dupin, que assinava George Sand. Mas estamos falando da década de 40 do século XX. Nem mesmo Oscar, aquele que viria a ser seu futuro marido, gostava de vê-la freqüentando o samba. O que era irônico, afinal os dois haviam se conhecido numa festa da escola Prazer da Serrinha, fundada pelo pai de Oscar.
Se Dona Ivone foi capaz de superar tudo isso é porque ela verdadeiramente nasceu para o samba. Mestre Paulão 7 Cordas, respeitado como um dos maiores e talvez o maior arranjador do mundo do samba, não poupa elogios a D.Ivone Lara, que ele conhece há mais de 30 anos:
“Se você tocar qualquer música pra ela, ‘Dona Ivone faz o contracanto aí’, ela faz certinho, como se tivesse antevendo pra onde a harmonia vai, pra onde o acompanhamento vai. Das pessoas que convivi no samba, nesse tempo todo – toda a minha vida foi dedicada a samba e a choro – nunca vi ninguém fazer isso com tanta facilidade.”
A musicalidade à flor da pele de Dona Ivone foi utilizada por ela também em sua longa e bem sucedida carreira profissional como enfermeira e posteriormente como assistente social diplomada. Ela trabalhou muitos anos com a doutora Nise da Silveira, que montou uma sala de música para os doentes mentais com piano, cavaquinho e pandeiro. Todas as tardes Dona Ivone fazia com eles um “ensaio geral” e não se furtava a cantar e sambar no meio da turma. Havia doentes esquizofrênicos, abandonados pelas famílias, que Dona Ivone descobriu serem músicos. O caso mais curioso era de um doente catatônico que só saía do seu mundo para perguntar: “Ivone, vai ter ensaio hoje?”
Sempre que foi perguntada sobre seu longo período no colégio interno, Dona Ivone respondeu com sábia resignação, destacando o lado positivo, como o fato de lá ter aprendido a esperar pacientemente. Teve que se valer desta virtude para ingressar no mundo do samba. Embora já fosse compositora aos 12 anos e frequentasse escola de samba desde menina, foi somente aos 34 anos que pode ver um samba seu cantado na avenida. Mas foi uma estréia espetacular, com uma música reconhecida ainda hoje como um dos maiores sambas-enredo de todos os tempos: “Cinco bailes da história do Rio de Janeiro”.
A chance de Dona Ivone surgiu através do seu primo Mestre Fuleiro, diretor de harmonia do Império Serrano. Fuleiro convocou a prima talentosa para resolver um problema. Silas de Oliveira e Bacalhau não conseguiam terminar o samba-enredo para o ano de 1965. Não era por falta de capacidade artística: Silas é considerado por muitos o maior compositor de sambas-enredo da história e Bacalhau era muito respeitado na escola. Acontece que quando a dupla se reunia eles bebiam todas e nada de completar o samba. Dona Ivone entra na parceria, ajuda a compor a música do início ao fim e fica sóbria para lembrar, o que era tarefa impossível para Silas e Bacalhau.
Mas ela ainda teve que enfrentar mais uma batalha. No dia em que o samba foi apresentado à escola, cercado de grande expectativa pois o mundo do samba já sabia da sua qualidade, o nome de Dona Ivone não aparecia no prospecto como compositora da música. Entra em cena um repórter que frequentava a escola e que alertou Silas e Bacalhau para a necessidade de incluir o nome de D.Ivone entre os compositores. A justiça foi feita. Dona Ivone ingressava na história como a primeira mulher a participar da composição de um samba-enredo no Império Serrano e uma das primeiras em todas as escolas de samba.