Tudo se transforma
O samba é um meio de expressão, fusão e re-invenção de tradições. Parece até com aquela famosa lei da Química: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Beth Carvalho, por exemplo, fez um grande sucesso com um samba de Rubens da Mangueira, um pagode bem sacudido, Ô, Isaura:
Ô, Isaura
pega na viola
o samba é bom
não vai terminar agora
Lá no Morro de Mangueira
Só não sobe quem não quer
Porque lá tem Tengo-Tengo
Santo Antônio e Chalé
Todo rico quando morre
Foi porque Jesus levou
Todo pobre quando morre
Foi cachaça que matou.
Mas observem a semelhança desses últimos quatro versos, com os versos do Lundu de Pai João, uma música do século XIX, de autor desconhecido. Aqui é como se tivessemos a fala de um preto velho, com seu português estropiado, mas com ideias claras:
Ele começa com uma denúncia do processo de escravização:
Quando iô tava na minha tera
Iô chamava capitão
Chega na terra dim baranco
Iô me chama – Pai João
Quando iô tava na minha terá
Comia mia garinha,
Chega na terra dim baranco
Carne seca com farinha.
E da injustiça que isso representa:
Quando iô tava na minha tera
Iô chamava generá,
Chega na terra dim baranco
Pega o cêto vai ganhá.
Dizaforo dim baranco
Nó si póri atura
Tá comendo, tá drumindo.
Manda nego trabaiá.
E finalmente chega aos versos re-aproveitados por Rubens da Mangueira:
Baranco dize quando more
Jesucrisso que levou,
E o pretinho quando more
Foi cachaça que matou
Notem que Rubens da Mangueira substituiu “baranco” (branco) por rico e “pretinho” por pobre, talvez um comentário crítico sobre a situação do negro pós-Abolição. Mas fora isso os versos são iguais. O Lundu de Pai João fez tanto sucesso à sua época que continuou sendo cantado, começou a fazer parte da memória popular, sobretudo dos negros descendentes de escravos. Afinal, era um “texto” de denúncia da injustiça. Logo os versos do lundu começaram a ser utilizados em rodas de partido alto e foram sendo passados de geração a geração.
Que Rubens da Mangueira tenha podido empregar os versos apenas com pequenas adaptações diz muito sobre a permanência de determinados problemas em nossa sociedade. Na verdade, o restante do Lundu de Pai João poderia estar no jornal de hoje:
Baranco dize – preto fruta,
Preto fruta co rezão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião.
Nosso preto fruta garinha
Fruta saco de fuijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.
Nosso preto quando fruta
Vai pará na coreção,
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão.