/HISTÓRIAS DO SAMBA – 26. Tudo se transforma

HISTÓRIAS DO SAMBA – 26. Tudo se transforma

Tudo se transforma

 

O samba é um meio de expressão, fusão e re-invenção de tradições. Parece até com aquela famosa lei da Química: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Beth Carvalho, por exemplo, fez um grande sucesso com um samba de Rubens da Mangueira, um pagode bem sacudido, Ô, Isaura:

 

Ô, Isaura

pega na viola

o samba é bom

não vai terminar agora

 

Lá no Morro de Mangueira

Só não sobe quem não quer

Porque lá tem Tengo-Tengo

Santo Antônio e Chalé

 

Todo rico quando morre

Foi porque Jesus levou

Todo pobre quando morre

Foi cachaça que matou.

 

Mas observem a semelhança desses últimos quatro versos, com os versos do Lundu de Pai João, uma música do século XIX, de autor desconhecido. Aqui é como se tivessemos a fala de um preto velho, com seu português estropiado, mas com ideias claras:

 

Ele começa com uma denúncia do processo de escravização:

 

Quando iô tava na minha tera

Iô chamava capitão

Chega na terra dim baranco

Iô me chama – Pai João

 

Quando iô tava na minha terá

Comia mia garinha,

Chega na terra dim baranco

Carne seca com farinha.

 

E da injustiça que isso representa:

Quando iô tava na minha tera

Iô chamava generá,

Chega na terra dim baranco

Pega o cêto vai ganhá.

 

Dizaforo dim baranco

Nó si póri atura

Tá comendo, tá drumindo.

Manda nego trabaiá.

 

E finalmente chega aos versos re-aproveitados por Rubens da Mangueira:

 

Baranco dize quando more

Jesucrisso que levou,

E o pretinho quando more

Foi cachaça que matou

 

Notem que Rubens da Mangueira substituiu “baranco” (branco) por rico e “pretinho” por pobre, talvez um comentário crítico sobre a situação do negro pós-Abolição. Mas fora isso os versos são iguais. O Lundu de Pai João fez tanto sucesso à sua época que continuou sendo cantado, começou a fazer parte da memória popular, sobretudo dos negros descendentes de escravos. Afinal, era um “texto” de denúncia da injustiça. Logo os versos do lundu começaram a ser utilizados em rodas de partido alto e foram sendo passados de geração a geração.

Que Rubens da Mangueira tenha podido empregar os versos apenas com pequenas adaptações diz muito sobre a permanência de determinados problemas em nossa sociedade. Na verdade, o restante do Lundu de Pai João poderia estar no jornal de hoje:

 

Baranco dize – preto fruta,

Preto fruta co rezão;

Sinhô baranco também fruta

Quando panha casião.

 

Nosso preto fruta garinha

Fruta saco de fuijão;

Sinhô baranco quando fruta

Fruta prata e patacão.

 

Nosso preto quando fruta

Vai pará na coreção,

Sinhô baranco quando fruta

Logo sai sinhô barão.