- Do fundo do meu quintal
Se na fazenda os escravos cantavam e dançavam no terreirão da Casa Grande ao som dos atabaques, no Pós-Abolição a cultura afro-brasileira sempre foi feita ao ar livre, em espaços abertos, no máximo ao abrigo de árvores frondosas. Nas cidades já não há quase espaços livres, mas nos subúrbios ainda há casas com quintais, uma tradição tipicamente lusitana. A expressão samba de fundo de quintal resume essa prática de reunir o grupo fora da casa, em meio ao que resta de natureza no meio urbano, travando contato direto com a força dos elementos.
Em um belíssimo livro-tributo dedicado à Velha Guarda da Portela, João Baptista Vargens e Carlos Monte mostram que a história do grupo está ligada sucessivamente a quatro quintais. Tudo começou no famoso quintal de Manacéa, onde Dona Neném preparava seu maravilhoso frango com quiabo. Antes do ensaio jogavam uma partida de sueca e depois o partido-alto rolava solto. Por obra dos deuses essa atmosfera foi eternizada no curta Partido Alto, de Leon Hirzman.
Na segunda metade da década de 70 os ensaios se transferiram para a casa e o quintal da Tia Doca, onde o prato principal, além do samba rasgado, era sopa de legumes ou de ervilha. Cantores de sucesso já começam a aparecer, para tomar parte na festa e para pescar novas composições para os seus discos como Roberto Ribeiro, Beth Carvalho e Jovelina Pérola Negra. Mas começou a haver movimento demais e a Velha Guarda partiu para o quintal do Argemiro, onde o samba tinha lugar nas quartas-feiras durante a década de 1980. Zeca Pagodinho e Martinho da Vila eram sempre bem chegados.
Certa vez o escritor angolano Manuel Rui, freqüentador de longa data das reuniões da Velha Guarda, traz junto sua mulher para a casa de Argemiro. O velho amigo é muito festejado pelos sambistas. Mas a mulher do escritor começa a chorar copiosamente. Depois ela explicou que se emocionara porque aquele tipo de reunião a fizera lembrar das festas na casa de seus avós em Luanda.